Livre dos piuns das doenças amolantes,
Com dinheiro sobrando, organizava
As poucas viagens que desejo... Iria
Viajar todo esse Mato Grosso grosso,
[5] Danado guardador da indiada feia,
E o Paraná verdinho... Ara, si acaso
Tivesse imaginado no que dava
A Isidora, não vê que ficaria
Na expectativa pança em que fiquei!
[10] Revoltoso banzando em viagens tontas,
Ao menos o meu sul conheceria,
Pampas forraginosos do Rio Grande
E praias ondejantes do Iguaçu...
Tarde, com os cobres feitos com teu ouro,
[15] Paguei subir pelo Amazonas... Mundos
Desbarrancando, chãos desbarrancados,
Aonde no quiriri do mato brabo
A terra em formação devora os homens...
Este refrão dos meus sentidos... Nada
[20] Matutarei mais sem medida, ôh tarde,
Do que essa pátria tão despatriada!
Vibro! Vibro. Mas constatar sossega
A gente. Pronto, sosseguei. O forde
Recomeça tosando a rodovia.
[25] “Nosso ranchinho assim tava bom”... Sonho...
Já sabe: desejando sempre... Um sítio,
Colonizado, sem necessidade
De japoneses nem de estefanóderis...
Que desse umas quatorze mil arrobas...
[30] Já me bastava. Gordas invernadas
Pra novecentos caracus bem…
Tarde,
Mário de Andrade. Louvação da Tarde. Apud Antonio Candido. O discurso e a cidade. Apêndice 2. São Paulo: Duas Cidades, 1993. p. 311-312.
No poema Louvação da Tarde, Mário de Andrade reformula a tradição inglesa do lirismo reflexivo ao mesmo tempo em que marca a incorporação das recentes conquistas de liberdade formal. Essa forma segura, menos combativa e pitoresca faz parte de uma síntese crítica na qual o poeta contempla alguns dos valores da tradição e reorganiza sua poética em função da expressividade interior.
A partir do trecho apresentado de Louvação da Tarde, assinale a opção correta.
Tratando de viagens pelas diversas regiões e vegetações brasileiras como meros desejos, o eu lírico se opõe à estética romântica da cor local, caracterizada por se basear apenas em sentimentos da nacionalidade, inspirados em estudos etnográficos, como se pode notar na poesia romântica de Álvares de Azevedo.
Em Louvação da Tarde, já se antecipam alguns elementos presentes em Macunaíma. Exemplo disso é o diálogo irônico e aflito com a tradição romântica na qual o indígena ou o homem regional seria o brasileiro ancestral, sendo, portanto, mitificado como parte da terra em favor da formação nacional, conforme expresso nos versos 14 a 21.
A ironia modernista de Mário de Andrade se evidencia na expressão “indiada feia” (v.5) e acaba quando o eu lírico opta pelo que não é mero desejo, mas realidade construída, sem utopias nem desejos: “‘Nosso ranchinho assim tava bom’...” (v.25).
No poema, o eu lírico conduz sua reflexão por imagens que expressam alternâncias entre desejos e realidade, mas na maioria das vezes o pendão cai para o registro jornalístico da realidade; por isso a obra de Mario de Andrade se caracteriza como pré-modernista.