LIV. A PÊNDULA
Saí dali a saborear o beijo. Não pude dormir; estirei-me na cama, é certo, mas foi o
mesmo que nada. Ouvi as horas todas da noite. Usualmente, quando eu perdia o sono, o
bater da pêndula fazia-me muito mal; esse tique-taque soturno, vagaroso e seco parecia
dizer a cada golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava então um velho
[5] diabo, sentado entre dois sacos, o da vida e da morte, a tirar as moedas da vida para dálas à morte, e a contá-las assim:
- Outra de menos...
- Outra de menos...
- Outra de menos...
[10] - Outra de menos...
O mais singular é que, se o relógio parava, eu dava-lhe corda, para que ele não
deixasse de bater nunca, e eu pudesse contar todos os meus instantes perdidos.
Invenções há, que se transformam ou acabam; as mesmas instituições morrem; o relógio
é definitivo e perpétuo. O derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há de ter
[15] um relógio na algibeira, para saber a hora exata em que morre.
Naquela noite não padeci essa triste sensação de enfado, mas outra, e deleitosa.
As fantasias tumultuavam-me cá dentro, vinham umas sobre outras, à semelhança de
devotas que se abalroam para ver o anjo-cantor das procissões. Não ouvia os instantes
perdidos, mas os minutos ganhados. De certo tempo em diante não ouvi coisa nenhuma,
[20] porque o meu pensamento, ardiloso e traquinas, saltou pela janela fora e bateu as asas
na direção da casa de Virgília. Aí achou ao peitoril de uma janela o pensamento de
Virgília, saudaram-se e ficaram de palestra. Nós a rolarmos na cama, talvez com frio,
necessitados de repouso, e os dois vadios ali postos, a repetirem o velho diálogo de
Adão e Eva.
Fonte: de Assis, Machado. Memórias Póstuma de Brás Cubas. Série Bom Livro. 18ª. Ed. Ática S.A. São Paulo, 1992. P.85.
Analise as proposições em relação à obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis, ao Texto e assinale (V) para verdadeira e (F) para falsa.
( ) Nas estruturas “para dá-las à morte” (linhas 5 e 6) e “vinham umas sobre outras, à semelhança” (linha 17) o acento indicativo da crase é obrigatório somente na primeira, porque a regência do verbo dar é transitiva direta e indireta
( ) Da leitura da obra, infere-se que o personagem Brás Cubas, pela posição que ocupa, a de “defunto-autor”, poderá retratar o mundo real e o mundo imaginário, o mundo que existe e o mundo do delírio, pois não precisará responder a questionamentos.
( ) No segmento “sentado entre dois sacos, o da vida e da morte” (linha 5) tem-se a figura de linguagem antítese.
( ) Da leitura do período “se o relógio parava, eu dava-lhe corda, para que ele não deixasse de bater nunca” (linhas 11 e 12), percebe-se que o personagem Brás Cubas tinha como meta atingir os objetivos por ele traçados e que, para isso, o tempo era fundamental.
( ) Em “Invenções há, que se transformam ou acabam” (linha 13) o verbo haver está no singular porque é impessoal enquanto a palavra que o precede, invenções, na sintaxe, tem a função de objeto direto.
Assinale a alternativa que apresenta a sequência correta, de cima para baixo.
F – V – V – F – V
V – V – V – F – V
F – F – V – V – F
V – V – V – F – F
F – F – F – V – V