Leia “Poema que aconteceu” e “Coração numeroso”, poemas que integram a obra Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade.
Poema que aconteceu
Nenhum desejo neste domingo
nenhum problema nesta vida
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem começo.
A mão que escreve este poema
não sabe que está escrevendo
mas é possível que se soubesse
nem ligasse.
Coração numeroso
Foi no Rio.
Eu passava na Avenida quase meia-noite.
Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.
Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
abafando o calor
que soprava no vento
e o vento vinha de Minas.
Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente
na Galeria Cruzeiro quente quente
e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento
mineiro,
nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso.
Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas
autos abertos correndo caminho do mar
voluptuosidade errante do calor
mil presentes da vida aos homens indiferentes,
que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram.
O mar batia em meu peito, já não sabia no cais.
A rua acabou, quede árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor.
Em relação aos dois poemas, é correto afirmar que:
“Poema que aconteceu” expressa a dedicação do poeta à criação poética.
No poema “Coração numeroso”, o eu lírico se apresenta amargurado e melancólico.
O vocabulário de “Poema que aconteceu” é típico da retórica romântica.
A linguagem formal e o discurso indireto estão presentes em “Coração numeroso”.
Ao adotar o ideal da impessoalidade, os poemas transparecem tendências do Parnasianismo.