UEA Geral 2020

Leia o trecho inicial do romance Dois irmãos, de Milton Hatoum, para responder à questão.

 

    Zana teve de deixar tudo: o bairro portuário de Manaus, a rua em declive sombreada por mangueiras centenárias, o lugar que para ela era quase tão vital quanto a Biblos de sua infância: a pequena cidade no Líbano que ela recordava em voz alta, vagando pelos aposentos empoeirados até se perder no quintal, onde a copa da velha seringueira sombreava as palmeiras e o pomar cultivados por mais de meio século.

    Perto do alpendre, o cheiro das açucenas-brancas se misturava com o do filho caçula. Então ela sentava no chão, rezava sozinha e chorava, desejando a volta de Omar. Antes de abandonar a casa, Zana via o vulto do pai e do esposo nos pesadelos das últimas noites, depois sentia a presença de ambos no quarto em que haviam dormido. Durante o dia eu a ouvia repetir as palavras do pesadelo, “Eles andam por aqui, meu pai e Halim vieram me visitar... eles estão nesta casa”, e ai de quem duvidasse disso com uma palavra, um gesto, um olhar. Ela imaginava o sofá cinzento na sala onde Halim largava o narguilé para abraçá-la, lembrava a voz do pai conversando com barqueiros e pescadores no Manaus Harbour, e ali no alpendre lembrava a rede vermelha do Caçula, o cheiro dele, o corpo que ela mesma despia na rede onde ele terminava suas noitadas. “Sei que um dia ele vai voltar”, Zana me dizia sem olhar para mim, talvez sem sentir a minha presença, o rosto que fora tão belo agora sombrio, abatido. A mesma frase eu ouvi, como uma oração murmurada, no dia em que ela desapareceu na casa deserta. Eu a procurei por todos os cantos e só fui encontrá-la ao anoitecer, deitada sobre folhas e palmas secas, o braço engessado sujo, cheio de titica de pássaros, o rosto inchado, a saia e a anágua molhadas de urina.

    Eu não a vi morrer, eu não quis vê-la morrer. Mas alguns dias antes de sua morte, ela deitada na cama de uma clínica, soube que ergueu a cabeça e perguntou em árabe para que só a filha e a amiga quase centenária entendessem (e para que ela mesma não se traísse): “Meus filhos já fizeram as pazes?”. Repetiu a pergunta com a força que lhe restava, com a coragem que mãe aflita encontra na hora da morte.

    Ninguém respondeu. Então o rosto quase sem rugas de Zana desvaneceu; ela ainda virou a cabeça para o lado, à procura da única janelinha na parede cinzenta, onde se apagava um pedaço do céu crepuscular.

(Dois irmãos, 2000.)

No último parágrafo do trecho, os elementos do cenário

a

configuram uma paisagem neutra, sem relação com os fatos

b

contradizem os fatos, fazendo com que se configure um mistério.

c

repetem e reforçam, por analogia, os fatos narrados.

d

localizam os fatos no tempo histórico e no espaço geográfico.

e

estabelecem com os fatos uma relação de causa e efeito.

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Resposta
C

Resolução

Neste trecho de Dois Irmãos, de Milton Hatoum, observamos como o cenário no último parágrafo reflete e reforça o estado emocional da personagem, especialmente no momento em que Zana, à beira da morte, expressa sua dúvida a respeito da reconciliação dos filhos. O ambiente – a parede cinzenta, a janelinha em que apenas se vê o resto de céu crepuscular – intensifica o sentido de melancolia e solidão do momento, acompanhando o que está acontecendo na narrativa. Assim, fica claro que esses elementos de cenário não são meramente descritivos: eles ecoam e amplificam a angústia e a falta de resolução do conflito familiar, por meio de uma analogia entre o ambiente opressivo e os sentimentos de Zana.

Dicas

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Releia cuidadosamente a descrição do cenário no último parágrafo.
Observe como as sensações descritas (cinzento, crepúsculo, etc.) podem espelhar as emoções das personagens no momento derradeiro da morte de Zana.

Erros Comuns

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Achar que o trecho descreve o cenário apenas como pano de fundo, sem perceber sua função simbólica.
Concluir que a descrição não tem relevância e não se conecta ao tema, subestimando sinais de interação emocional entre ambiente e personagens.
Confundir a presença do cenário como sendo mera localização temporal ou histórica.
Revisão
É importante compreender como a descrição do ambiente pode funcionar como metáfora ou reforço das emoções das personagens em textos literários. Esse recurso, em que elementos do cenário "dialogam" com a ação narrativa, é comum na literatura, criando uma atmosfera que intensifica os sentimentos. Além disso, observar o foco narrativo, o tom e o uso de movimentos de câmera literária (mudanças de cena, close nos personagens e no cenário) ajuda a interpretar o sentido do texto.
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