Leia o trecho final de O cortiço.
A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos espalmada no chão e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou aterrada para eles, sem pestanejar.
Os policiais, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguém conseguisse alcançála, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado.
E depois embarcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.
João Romão fugira até ao canto mais escuro do armazém, tapando o rosto com as mãos.
Nesse momento parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de abolicionistas que vinha, de casaca, trazer-lhe respeitosamente o diploma de sócio benemérito.
Ele mandou que os conduzissem para a sala de visitas.
Considere as seguintes afirmações sobre o trecho.
I - O narrador em terceira pessoa aproxima-se de Bertoleza, assumindo seu ponto de vista para desmascarar o falso abolicionismo de João Romão; ao mesmo tempo, mantém-se distante dela ao descrevê-la com traços animalescos.
II - A morte terrível de Bertoleza destoa do andamento geral do romance, marcado pelo lirismo da narração, característica naturalista presente no texto de Aluísio Azevedo.
III- A última frase do trecho sugere que João Romão receberá a comissão a despeito do fim de Bertoleza, em uma alegoria do Brasil: abolicionista na sala de visitas, escravocrata na cozinha.
Quais estão corretas?
Apenas II.
Apenas III.
Apenas I e II.
Apenas I e III.
I, II e III.
Para resolver a questão, devemos analisar as três afirmações a respeito do trecho final de O cortiço, de Aluísio Azevedo, verificando se correspondem à interpretação adequada do texto e à estética naturalista.
Análise de cada afirmação
I. “O narrador em terceira pessoa aproxima-se de Bertoleza, assumindo seu ponto de vista para desmascarar o falso abolicionismo de João Romão; ao mesmo tempo, mantém-se distante dela ao descrevê-la com traços animalescos.”
Bertoleza é descrita de forma que evidencia seu sofrimento e a condição de absoluta submissão, além de seu ato desesperado de suicídio. Ao mesmo tempo, o texto a apresenta com expressões que aproximam a personagem do que seria um “animal acuado” (“anta bravia”), algo comum na estética naturalista, em que os instintos são ressaltados e há uma animalização das personagens. Essa descrição serve também para desmascarar a hipocrisia de João Romão, que almeja a ascensão social – fingindo ideais abolicionistas – enquanto aprisiona Bertoleza. Assim, a afirmação I está correta.
II. “A morte terrível de Bertoleza destoa do andamento geral do romance, marcado pelo lirismo da narração, característica naturalista presente no texto de Aluísio Azevedo.”
O romance O cortiço é um exemplo característico do Naturalismo brasileiro, que enfatiza aspectos como o determinismo ambiental, os instintos, a animalização das personagens e cenas chocantes ou trágicas – como a morte violenta de Bertoleza. Logo, essa morte não destoa do andamento do romance; pelo contrário, encaixa-se na crueza típica do estilo naturalista. Portanto, a afirmação II está equivocada.
III. “A última frase do trecho sugere que João Romão receberá a comissão a despeito do fim de Bertoleza, em uma alegoria do Brasil: abolicionista na sala de visitas, escravocrata na cozinha.”
A cena final coloca em evidência o contraste entre o reconhecimento "abolicionista" de João Romão (recebendo uma homenagem) e o fato de ele ter explorado Bertoleza como escravizada, terminando em desfecho trágico. Ou seja, o trecho escancara a hipocrisia social: na frente, aparência de benemérito; nos bastidores, violência e exploração. Essa contradição funciona como metáfora da sociedade brasileira da época. Logo, a afirmação III está correta.
Conclusão: as afirmações corretas são I e III. Pela lista de alternativas, isso corresponde à letra D.
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