Leia o trecho do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, para responder a questão.
Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos tinham- -se habituado à camarinha escura, pareciam ratos — e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera.
Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió1 um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao binga2, pôs-se a fumar regalado.
— Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.
Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:
— Você é um bicho, Fabiano.
Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades.
Chegara naquela situação medonha — e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha.
— Um bicho, Fabiano.
Era. Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto, passara uns dias mastigando raiz de imbu e sementes de mucunã. Viera a trovoada.
(Graciliano Ramos. Vidas secas, 2001.)
1aió: bolsa de caça feita com a fibra trançada do caroá.
2 binga: espécie de isqueiro rústico feito de chifre.
Fabiano refere-se a si próprio de duas formas diferentes: primeiro, como homem e, depois, como bicho.
A respeito dessa dupla caracterização, pode-se dizer que
Fabiano sentia-se humano, quando estava com seus filhos, e forte como um bicho, quando estava trabalhando no sertão.
Fabiano tinha uma personalidade instável, percebendo-se de diferentes formas a cada momento.
representa uma crítica de Fabiano às precárias condições de vida do sertanejo, como a fome e a falta de trabalho.
retrata simbolicamente as condições sub-humanas a que o sertanejo estava submetido.
representa simbolicamente a hesitação característica dos sertanejos de baixa escolaridade.