Leia o trecho do poema “Lembrança de morrer”, do poeta Álvares de Azevedo (1831-1852), para responder à questão.
Quando em meu peito rebentar-se a fibra,
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente.
E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento1.
Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto o poento2 caminheiro3…
Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre4 de um sineiro5
Como o desterro de minh’alma errante,
Onde fogo insensato a consumia,
Só levo uma saudade – é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia6.
(Lira do vinte anos, 1996.)
1 passamento: falecimento.
2 poento: que tem poeira, poeirento.
3 caminheiro: andarilho.
4 dobre: toque do sino.
5 sineiro: aquele que toca sino.
6 embelecer: tornar belo.
Os dois versos iniciais da 3a estrofe (“Eu deixo a vida como deixa o tédio / Do deserto o poento caminheiro…”) constituem uma oração cujos termos não estão em ordem direta (fenômeno linguístico conhecido como “hipérbato”). Uma compreensão adequada dessa oração implica a seguinte leitura:
O tédio deixa o poento caminheiro do deserto como eu deixo a vida.
Eu deixo a vida do deserto como o poento caminheiro deixa o tédio.
Eu deixo a vida como o poento caminheiro deixa o tédio do deserto.
Eu deixo o poento caminheiro como a vida deixa o tédio do deserto.
O poento caminheiro deixa a vida como eu deixo o tédio do deserto.