UEA SIS 2ª Etapa 2016

Leia o trecho do conto “O alienista”, de Machado de Assis (1839-1908), para responder à questão.

 

  De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam1 loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete. O padre Lopes confessou que não imaginara a existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco2 e vilão3 , que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos4 de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano5 . O vigário não queria acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua!

  – Não digo que não, respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que Vossa Reverendíssima está vendo. Isto é todos os dias.

  – Quanto a mim, tornou o vigário, só se pode explicar pela confusão das línguas na torre de Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as línguas, é fácil trocá-las agora, desde que a razão não trabalhe…

  – Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do fenômeno, concordou o alienista, depois de refletir um instante, mas não é impossível que haja também alguma razão humana, e puramente científica, e disso trato…

  – Vá que seja, e fico ansioso. Realmente!

  […]

  A mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O mais notável era um pobre-diabo, filho de um algibebe6 , que narrava às paredes (porque não olhava nunca para nenhuma pessoa) toda a sua genealogia, que era esta:

  – Deus engendrou7 um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi, Davi engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês, o marquês engendrou o conde, que sou eu.

  Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas:

  – Deus engendrou um ovo, o ovo etc.

  Outro da mesma espécie era um escrivão, que se vendia por mordomo do rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda a gente, dava trezentas cabeças a um, seiscentas a outro, mil e duzentas a outro, e não acabava mais. Não falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se despegariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus. Assim o escrevia ele no papel que o alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por interesse científico.

(Papéis avulsos, 2011.)

 

1 afluir: chegar.

2 bronco: tosco; destituído de cultura.

3 vilão: desprezível.

4 recamo: adorno, enfeite.

5 Cícero, Apuleio e Tertuliano: três dos maiores oradores da Antiguidade.

6 algibebe: vendedor de roupas de tecido barato; mascate.

7 engendrar: criar.

O chamado discurso indireto livre constitui uma construção em que a voz da personagem se mescla à voz do narrador. Verifica-se a ocorrência de discurso indireto livre em:

a

“Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação.” (1° parágrafo) 

b

“O padre Lopes confessou que não imaginara a existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos.” (1° parágrafo) 

c

“O vigário não queria acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua!” (1° parágrafo) 

d

“– Não digo que não, respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que Vossa Reverendíssima está vendo. Isto é todos os dias.” (2° parágrafo) 

e

“– Vá que seja, e fico ansioso. Realmente!” (5° parágrafo)

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Resposta
C

Resolução

Nesse trecho de “O alienista”, o discurso indireto livre ocorre quando a voz do narrador é sobreposta, sem uma oração introdutória formal, à reprodução do pensamento ou da fala da personagem, mesclando as duas vozes. A alternativa (C) exemplifica esse fenômeno ao mostrar a reação e o pensamento do vigário imediatamente inseridos na narração, sem a marca de discurso direto tradicional.

Assim, em “O vigário não queria acabar de crer. Quê! Um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua!”, a primeira frase (“O vigário não queria acabar de crer”) aparece na voz do narrador, mas a segunda (com a exclamação “Quê!”) representa o pensamento direto do vigário, ainda que sem aspas ou verbo de elocução. Isso demonstra a fusão das vozes, que caracteriza o discurso indireto livre.

Dicas

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Observe onde a fala do personagem aparece embutida na narração sem travessões.
Preste atenção à ausência de um verbo que introduza a fala do personagem.

Erros Comuns

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Confundir discurso indireto livre com discurso direto, por conta de exclamações ou entonações.
Achar que qualquer fala sem aspas é discurso indireto livre.
Não perceber que a falta de verbo introdutório e a inserção da fala no corpo do texto são marcantes para o discurso indireto livre.
Revisão

Discurso indireto: é aquele em que o narrador relata a fala ou o pensamento de uma personagem usando suas próprias palavras, geralmente acompanhado de verbos introdutórios (dizer, perguntar, pensar).

Discurso direto: apresenta a fala da personagem de forma literal, geralmente com uso de travessões ou aspas.

Discurso indireto livre: funde a voz do narrador e da personagem, sem as marcas tradicionais do discurso direto (como travessão ou aspas) e sem a introdução típica do discurso indireto.

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