UEL 2021
Leia o trecho de Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, e responda a questão
15 de maio
Tem noite que eles improvisam uma batucada e não deixa ninguém dormir. Os visinhos de alvenaria já tentaram com abaixo assinado retirar os favelados. Mas não conseguiram. Os visinhos das casas de tijolos diz:
– Os políticos protegem os favelados.
Quem nos protege é o povo e os Vicentinos. Os políticos só aparecem aqui nas epocas eleitoraes. O senhor Cantidio Sampaio quando era vereador em 1953 passava os domingos aqui na favela. Ele era tão agradavel. Tomava nosso café, bebia nas nossas xícaras. Ele nos dirigia as suas frases de viludo. Brincava com nossas crianças. Deixou boas impressões por aqui e quando candidatou-se a deputado venceu. Mas na Camara dos Deputados não criou um projeto para beneficiar o favelado. Não nos visitou mais.
... Eu classifico São Paulo assim: o Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10ª ed. São Paulo: Ática, 2014. p.32.
Com base na leitura do trecho, considere as afirmativas a seguir
I. O trecho “bebia nas nossas xícaras” corresponde a uma imagem que busca no cotidiano e na alusão a seus objetos materiais a composição de uma cena que é desmascarada ainda no mesmo parágrafo.
II. A expressão “frases de viludo” cria o contraste entre a fala sofisticada do político e o uso da linguagem a que recorre a própria autora em sua prática de escrita baseada na simplicidade e na autenticidade.
III. A expressão “frases de viludo” revela afastamento em relação à norma culta, ao mesmo tempo em que demonstra desenvoltura da autora para exibir consciência política e índole poética.
IV. O trecho “bebia nas nossas xícaras” comprova a capacidade da autora para construir passagens líricas, desvinculando-se da temática política e social e do tom ácido e inconformado.
Assinale a alternativa correta.
Somente as afirmativas I e II são corretas.
Somente as afirmativas I e IV são corretas.
Somente as afirmativas III e IV são corretas.
Somente as afirmativas I, II e III são corretas.
Somente as afirmativas II, III e IV são corretas.
Resolução
A alternativa correta é aquela que aponta I, II e III como verdadeiras e IV como falsa, isto é, a letra D.
Observemos cada afirmação:
- I. O político aparenta proximidade (aceitando beber em “nossas xícaras”), porém é logo desmascarado quando se constata que toda a gentileza era apenas estratégia para conquistar votos, sem, posteriormente, defender efetivamente os favelados. A autora, assim, expõe a hipocrisia ao longo do mesmo parágrafo.
- II. A expressão “frases de viludo” (em lugar de “veludo”) sugere uma fala “macia” ou “agradável” do político, o que se opõe à linguagem simples e autêntica própria de Carolina. Cria-se, então, um contraste entre a suposta sofisticação do discurso político e a expressão pessoal da autora.
- III. O uso de “viludo” ao invés de “veludo” mostra a distância da norma-padrão da língua, mas não sinaliza ausência de reflexão. Ao contrário, Caroline Maria de Jesus exibe consciência política e certa poeticidade, ao se valer de imagens contundentes e de uma expressão própria, revelando um sentido crítico sem perder a força de sua voz literária.
- IV. É incorreta por afirmar que “bebia nas nossas xícaras” comprovaria um trecho lírico desvinculado de questões políticas. Na verdade, essa imagem está carregada de crítica social e mostra como o político se aproximava de modo afetivo (e até certo ponto cênico) para buscar votos, mas depois passa a se afastar, evidenciando claramente o tom ácido e inconformado da autora.
Dicas
Erros Comuns
1. Narrador em primeira pessoa e o testemunho social: O diário de Carolina Maria de Jesus é um registro autobiográfico e social do cotidiano na favela, evidenciando fatos e opiniões de quem vive à margem da sociedade.
2. Linguagem, norma culta e oralidade: O texto mistura gêneros e revela desvios em relação à norma-padrão da língua, algo que expressa a condição social e a experiência de vida da autora, mas sem comprometer seu sentido crítico e a criatividade poética.
3. Crítica social e política: Carolina expõe sem rodeios a precariedade vivida nas favelas, a negligência do poder público e a hipocrisia eleitoreira.
