Leia o trecho de Os sertões, de Euclides da Cunha, para responder à questão.
Perfeita tradução moral dos agentes físicos da sua terra, o sertanejo do Norte teve uma árdua aprendizagem de reveses. Afez-se, cedo, a encontrá-los, de chofre1, e a reagir, de pronto.
Atravessa a vida entre ciladas, surpresas repentinas de uma natureza incompreensível, e não perde um minuto de tréguas. É o batalhador perenemente combalido2 e exausto, perenemente audacioso e forte; preparando-se sempre para um recontro que não vence e em que se não deixa vencer; passando da máxima quietude à máxima agitação; da rede preguiçosa e cômoda para o lombilho3 duro, que o arrebata, como um raio, pelos arrastadores4 estreitos, em busca das malhadas5. Reflete, nestas aparências que se contrabatem, a própria natureza que o rodeia – passiva ante o jogo dos elementos e passando, sem transição sensível, de uma estação à outra, da maior exuberância à penúria dos desertos incendidos, sob o reverberar dos estios abrasantes.
É inconstante como ela. É natural que o seja. Viver é adaptar-se. Ela o talhou à sua imagem: bárbaro, impetuoso, abrupto…
1 chofre: golpe ou choque repentino.
2 combalido: fisicamente abalado, enfraquecido.
3 lombilho: tipo de sela ou músculo lombar da rês (animal de montaria).
4 arrastadores: trilhas abertas no mato por vaqueiros.
5 malhadas: rebanho de gado.
(Os sertões, 2003.)
Leia o trecho de Inocência, de Visconde de Taunay, para responder à questão.
O legítimo sertanejo, explorador dos desertos, não tem em geral família. Enquanto moço, o seu fim único é devassar terras, pisar campos onde ninguém antes pusera pé, vadear rios desconhecidos, despontar cabeceiras1 e furar matas que descobridor algum até então haja varado.
Cresce-lhe o orgulho na razão direta da extensão e importância das viagens empreendidas; o seu maior gosto cifra-se em enumerar as correntes caudais que transpôs, os ribeirões que batizou, as serras que trasmontou e os pantanais que afoitamente cortou, quando não levou dias e dias a rodeá-los com rara paciência.
Cada ano que finda lhe traz mais um valioso conhecimento e acrescenta uma pedra ao monumento da sua inocente vaidade.
– Ninguém pode comigo, exclama ele enfaticamente. Nos campos da Vacaria, no sertão do Mimoso e nos pantanos2 do Pequiri, sou rei.
E esta presunção de realeza infunde-lhe certo modo de falar e de gesticular majestático em sua singela manifestação.
Notas do autor:
1 despontar cabeceiras: rodear as nascentes dos rios, procurando sempre terreno enxuto.
2 pantanos: no interior pronuncia-se a palavra grave e não esdrúxula, mais conforme assim com a etimologia.
(Inocência, 1994.)
Ao comparar os trechos de Inocência e de Os sertões, pode-se perceber que a natureza:
no primeiro, representa um espaço marcado por perigos, enquanto, no segundo, é o refúgio em que o homem se distancia de seus problemas.
no primeiro, equivale a um lugar hostil, enquanto, no segundo, tem uma função decorativa, apresentando-se como um objeto de contemplação.
no primeiro, é retratada de modo realista, com aspectos positivos e negativos, enquanto, no segundo, surge idealizada, como berço exuberante da pátria.
no primeiro, deixa-se dominar pelo sertanejo, enquanto, no segundo, impõe ao sertanejo obstáculos que terminam por moldar-lhe o caráter.
no primeiro, mostra-se como uma força que oprime o sertanejo, enquanto, no segundo, revela-se mais maternal, facilitando a adaptação do sertanejo.