Leia o trecho abaixo, retirado do conto “O homem com cabeça de papelão”, do escritor brasileiro João do Rio (1881 – 1921):
Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.
— Traz algum relógio?
— Trago a minha cabeça.
— Ah! Desarranjada?
— Dizem-no, pelo menos.
— Em todo o caso, há tempo?
— Desde que nasci.
— Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem...
Antenor atalhou:
— E o senhor fica com a minha cabeça?
— Se a deixar.
— Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu
não posso andar sem cabeça...
— Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe
uma de papelão.
— Regula?
— É de papelão! explicou o honesto negociante.
Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.
(Antologia de Humorismo e Sátira. Org. R. Magalhães Júnior. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957, pág. 196.)
Já por esse pequeno excerto, é possível perceber que o conto apresenta indícios:
De crítica às instituições sociais tradicionais, como casamento e religião, que são ironizadas por meio da figura do homem que concerta cabeças.
De ruptura com a tradição literária vigente na época, de vertente neoclássica, por meio da utilização de personagens comuns, que fogem do padrão do herói clássico.
Da valorização do diálogo livre, que era uma característica marcante do Romantismo.
Do aproveitamento da cultura pagã, que foi, por muito tempo, repelida pelos estilos de vertente teocêntrica.
Da presença do estilo fantástico, pois apresenta fatos que seriam impossíveis pela lógica da realidade convencional.