UFT Manhã 2011/1

Leia o texto para responder à questão 05.

 

O colocador de pronomes

Monteiro Lobato

 

  Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática. Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática. E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática. Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização.

  Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dado à luz no ―Itaoquense‖, com bastante sucesso. Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada. Triburtino não era homem de brincadeiras. Esgoelara um vereador oposicionista em plena sessão da Câmara e desde aí, se transformou no tutu da terra. Toda a gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados, nem tufos de cabelos no nariz.

  Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores — o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na Rua D‘Elba, nos dias de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o

Acorda, donzela...

sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.

Aqui se estrepou...

Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:

Anjo adorado!

Amo-lhe!…

Para abrir o jogo, bastava esse movimento de peão.

Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto — para umas certidõezinhas, explicou.

Apesar disso, o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha. Não lhe erravam os pressentimentos. Mal o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:

— A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca-nunca, ouviu? que contra ela se cometa o menor deslize. Parou.

Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o.

— É sua esta peça de flagrante delito?

O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.

— Muito bem! continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora...

O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.

— …é casar! concluiu de improviso o vingativo pai.

O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e, com lágrimas nos olhos, disse, gaguejante:

— Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!...

Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.

— Nada de frases moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!

E voltando-se para dentro, gritou:

— Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!

O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.

— Laurinha quer o coronel dizer...

— Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama-‖lhe‖. Se amasse a ela deveria dizer amo-‖te‖. Dizendo ―amo-lhe‖ declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher!...

— Oh, coronel...

— ...ou à preta Luzia, cozinheira. Escolha!

O escrevente, vencido, derrubou a cabeça, com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição da sua gramática matrimonial.

— Os pronomes, como sabe, são três: da primeira pessoa — quem fala, e neste caso vassuncê; da segunda pessoa - a quem se fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa — de quem se fala, e neste caso Maria do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!

Não havia fuga possível.

O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo acanhada a ponta do avental novo ao alcance do maquiavélico pai. Submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente:

— Deus vos abençoe, meus filhos!

(...)

Texto adaptado http://lasalledf.com.br/cursos/em/literatura/arquivos/pronomes.pdf (acesso em 13/09/2010)

I. Em 'Se quiser, eu posso lhe levar em casa‘, o pronome lhe, principalmente na língua falada, não se refere a ele ou ela, mas sim a você. A mesma lógica pode ser aplicada ao uso que o escrevente fez ao escrever 'amo-lhe‘.
II. O uso dos pronomes na sentença 'Eu te vi ontem na rua, te chamei, mas você não escutou‘ está de acordo com o que gramática normativa prescreve.
III. De acordo com a variedade padrão, os pronomes oblíquos átonos de terceira pessoa lhe e lhes funcionam como complementos verbais e são próprios do objeto indireto.
IV. Nas variedades não-padrão, é comum encontrarem-se usos que diferem da variedade padrão. Um exemplo disso é o uso dos pronomes pessoais ele e ela na posição de complemento verbal, como em 'Eu conheci ele ontem‘.
 
Das afirmações acima

a

apenas I está correta.

b

apenas II está correta.

c

apenas II e IV estão corretas.

d

apenas I, II e III estão corretas.

e

apenas I, III e IV estão corretas.

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Resposta
E
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