Leia o seguinte excerto de Flaubert, iniciador do realismo literário.
O autor, em sua obra, deve ser como Deus no universo, presente em toda parte, e visível em parte nenhuma. A arte sendo uma segunda natureza, o criador dessa natureza deve agir com o procedimento análogo. Que se sinta em todos os átomos, em todos os aspectos, uma impassibilidade escondida e infinita. O efeito, para o espectador, deve ser uma espécie de assombro. Como tudo isto foi feito? É o que se deve dizer, e sentir-se, esmagado sem saber por quê.
(FLAUBERT, Gustave. Cartas exemplares. Rio de Janeiro: Imago, 2005, p. 83.)
A partir dessa afirmação e levando em conta a obra madura de Machado de Assis, sobretudo Memórias Póstumas de Brás Cubas, é CORRETO afirmar:
Memórias Póstumas de Brás Cubas está para a literatura brasileira assim como Madame Bovary está para a francesa: ambas as obras iniciaram o realismo em seus respectivos países e em ambas as obras o narrador/autor se ausenta da narração, fazendo a narrativa parecer uma “segunda natureza”.
Machado de Assis soube se apropriar como ninguém dos procedimentos inventados ou desenvolvidos por Gustave Flaubert, como o discurso indireto livre e a invisibilização do narrador.
O narrador de Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas, toma emprestado de Flaubert não somente a forma de narrar linear e objetivista, mas também a “pena da galhofa e a tinta da melancolia”, mencionadas na abertura do livro, inaugurando assim o realismo no Brasil, com fortes traços de pessimismo e ceticismo.
Embora considerado o inaugurador do realismo no Brasil, Machado de Assis destoa completamente da máxima de Flaubert, pois seus narradores deixam claro o tempo todo que os leitores estão diante não de uma segunda natureza, mas de uma narração.
Se o realismo de Flaubert está ancorado num narrador “presente em toda parte e visível em parte nenhuma”, o realismo de Machado, por sua vez, embora em grau menor, também se baseia num narrador que, por conta de sua condição de defunto, se distancia dos fatos narrados, tornando-se de certa forma “invisível”.