Leia o poema “Pai João”, de Bruno de Menezes (1993, p. 223, 224), para fazer a questão que se segue.
Pai João sonolento e bambo na pachorra da idade
cisma no tempo de ontem.
De olhos vendo o passado recorda o veterano
a vida brasileira que êle viu e gosou e viveu!
Mãe Maria contou que o pai dele era escravo...
Moleque sagica e teso, destro e afoito num rôlo,
Pai João teve fama da capoeira e navalhista.
Êita!... Era o pé comendo,
quando a banda marcial saía à rua,
com tanto soldado de calça encarnada.
E rabo-de-arraia, cabeçada na polícia,
xadrez, desordens, furdunço no cortiço
e o ronco e o retumbo do zonzo som molengo do carimbó:
“Juvená
Juvená!
Arrebate
esta faca
Juvená!
Arrebate
esta faca
Juvená!”
De amores... uma anagua de renda engomada,
um cabeção pulando nos bicos duns peitos,
umas sandalias brancas bem na pontinha dum pé.
E o rebolo bolinante dos quartos roliços da Chica Cheirosa...
E a guerra do Paraguai! Recrutamento!
Gurjão! Osório! Duque de Caxias!
Itororó! Tuiutí! Laguna!
E não sabia nem o que era monarquia!
... Agora, sonolento e bambo,
tendo em capuchos a trunfa,
Pai João ao recordar a vida brasileira,
que êle viu e gosou e viveu,
diz do Brasil de ontem:
Ah! Meu tempo!...
O texto de Bruno de Menezes faz alguns recortes da vida de Pai João, que também é título do poema pertencente à obra Batuque, publicada a primeira vez em 1931 e cuja grafia está de acordo com a edição de 1993, conforme o original. Observe o verso 21: “E não sabia nem o que era monarquia!”, o qual marca uma mudança no tom ameno do poema. Levando-se em conta a importância desse verso, o que se pode afirmar acerca do poema como um todo é que:
Antes apenas mostrou-se o lado alegre da vida de Pai João, com o ritmo dançante do carimbó (e do refrão que evoca o capoeirista “Juvená”), do tempo de confusão e capoeira (jogo, brincadeira e luta ao mesmo tempo) e agora a realidade traz um homem já envelhecido e profundamente infeliz.
Pai João é de um tempo que não existe mais, em que a capoeira era mal vista por todos (apenas como luta de marginais e não como resistência) e sua personalidade “sagica” não se vergava ao sistema herdeiro da escravidão que mandava apenas negros para lutarem em uma guerra que não lhes pertencia.
Expõe um Pai João melancólico e moribundo, reduzido a quase nada, que se ressente de um passado perdido para sempre e de não ter aproveitado tanto a vida, hoje encontrando-se numa situação trágica à beira da morte.
A juventude, força e destreza do homem de ontem não combinam com o presente de lentidão de quem se vê imerso nas lembranças que não o deixam esquecer-se de quando era feliz a lutar na guerra do Paraguai, junto com seus companheiros de capoeira e navalha.
Mesmo despolitizados – situação de praticamente todos os negros e descendentes de africanos –, principalmente pela falta de escolaridade, jovens como o Pai João de muito tempo atrás eram forçados a ir lutar na guerra.