Leia o poema “Não-coisa”, do livro Muitas vozes, de Ferreira Gullar, e assinale a alternativa CORRETA a seguir.
O que o poeta quer dizer
no discurso não cabe
e se o diz é pra saber
o que ainda não sabe.
Uma fruta uma flor
um odor que relume...
Como dizer o sabor,
seu clarão seu perfume?
Como enfim traduzir
na lógica do ouvido
o que na coisa é coisa
e que não tem sentido?
A linguagem dispõe
de conceitos, de nomes
mas o gosto da fruta
só o sabes se a comes
só o sabes no corpo
o sabor que assimilas
e que na boca é festa
de saliva e papilas
invadindo-te inteiro
tal do mar o marulho
e que a fala submerge
e reduz a um barulho,
um tumulto de vozes
de gozos, de espasmos,
vertiginoso e pleno
como são os orgasmos
No entanto, o poeta
desafia o impossível
e tenta no poema
dizer o indizível:
subverte a sintaxe
implode a fala, ousa
incutir na linguagem
densidade de coisa
sem permitir, porém,
que perca a transparência
já que a coisa é fechada
à humana consciência.
O que o poeta faz
mais do que mencioná-la
é torná-la aparência
pura — e iluminá-la.
Toda coisa tem peso:
uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,
a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
— essa voz somos nós.
Esse poema se debruça sobre um tema muito recorrente na poética de autor, que é a reflexão com o fazer-poético.
Esse é um dos poemas neoconcretos de Ferreira Gullar, sobretudo por questionar a condição de objeto do poema.
Este poema, assim como os demais presentes nesse livro, assinala uma inflexão na poesia de Gullar: um retorno às formas fixas e rejeição das experimentações poéticas, sobretudo de sua fase concreta-neoconcreta.
Este poema é um tipo exemplo da estética da Geração de 45, com seu apuro formal e um certo viés neoparnasiano.
Nesse poema, Ferreira Gullar dialoga com as formas tradicionais da literatura de cordel para fazer uma reflexão metalinguística.