Leia o conto de Antônio de Alcântara Machado para responder a questão.
Gaetaninho
– Chi, Gaetaninho, como é bom!
Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quási o derrubou e êle não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e êle não ouviu o palavrão.
– Eh! Gaetaninho! Vem pra dentro.
Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo.
– Subito!
Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Deante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda porta a dentro.
Eta salame de mestre!
Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de entêrro. De entêrro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.
O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da Tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem.
Mas se era o único meio? Paciência.
Gaetaninho enfiou a cabeça em baixo do travesseiro.
Que beleza , rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois êle. Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: Encouraçado São Paulo. Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha, outro de gravata verde) e o padrinho seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o entêrro. Sobretudo admirando o Gaetaninho.
Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queira ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho só.
Gaetaninho ia berrar mas a tia Filomena com mania de cantar o Ahi, Mari! todas as manhãs o acordou.
Primeiro ficou desapontado. Depois quási chorou de ódio.
Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho. Tão forte que êle sentiu remorsos. E para sossêgo da família alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa nova versão de seu sonho. Matutou, matutou e escolheu o acendedor da Companhia de Gás, seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado de doído.
Os irmãos (êsses) quando souberam da história resolveram arriscar de sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E êles ficaram loucos de raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo.
O jôgo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não estava ligando.
– Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?
– Meu pai deu uma vez na cara dêle.
– Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!
O Vicente protestou indignado:
– Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando!
Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades.
O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa.
– Passa pro Beppino!
Beppino deu dois passos e meteu o pé na
bola. Com todo o muque. Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
– Vá dar tiro no inferno!
– Cala a bôca, palestrino!
– Traga a bola!
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.
No bonde vinha o pai de Gaetaninho. A gurisada assustada espalhou a notícia na noite.
– Sabe o Gaetaninho?
– Que é que tem?
– Amassou o bonde!
A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.
Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um entêrro da Rua do Oriente e Gaetaninho não ia na boleia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha.
Quem na boleia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino.
*A grafia das palavras foi mantida tal qual na obra original. MACHADO, Antônio de Alcântara. Gaetaninho. In: Brás, Bexiga e Barra Funda. Notícias de São Paulo. Belo Horizonte: Garnier, 2002. p. 23-29.
Rodrigo de Andrade comenta a respeito do conto “Gaetaninho” e da obra que o contém: “Não é só esse desfecho trágico de Gaetaninho que não se esquece mais. É um pedaço pitoresco de bairro italiano. Um pedaço de vida. [...] A forma do sr. Antonio de Alcântara Machado é sua só. Não se sente nele a influência de ninguém. Neste livro novo mais do que no anterior seu estilo é preciso, direto, conciso. Não tem a preocupação de ser moderno. E é. Intensamente.”
(Andrade, Rodrigo M. F. de. Vida Literária. Antonio de Alcântara Machado. In: Brás, Bexiga e Barra Funda. Notícias de São Paulo. Belo Horizonte: Garnier, 2002. p. 95.)
Analise as sentenças seguintes sobre o conto, sob as luzes do comentário de Rodrigo de Andrade e atribua como julgamentos: Falsa F ou Verdadeira V.
1. A linguagem utilizada corresponde ao paradigma moderno de proximidade entre a língua oral e a língua escrita.
2. Há na narrativa a utilização de tempo psicológico, largamente empregado nas produções literárias do Modernismo.
3. Os índices de modernidade podem ser percebidos por meio de elementos como carro, bonde e a figura do acendedor da Companhia de Gás
4. O início do texto: “– Chi, Gaetaninho, como é bom!”, em forma de diálogo, é um recurso estilístico utilizado no gênero dramático, por isso pode-se dizer que “Gaetaninho” é uma produção literária dramática, com resquícios líricos.
5. A menção ao “jogo do bicho” permite dizer que o autor fez, no conto, apologia a jogos de azar, que eram proibidos na época em que foi publicado o conto.
6. Os nomes de personagens utilizados são típicos da cultura brasileira.
7. A presença de linguagem vulgar, adequada aos personagens representados, com xingamentos e metáforas que conotam humor negro está de acordo com o projeto estético, tanto quanto com o ideológico do Modernismo de primeira geração: aproximar a literatura das classes populares.
8. O espaço narrativo evidenciado na narrativa faz alusão à paradigmas clássicos, já que trata de temática universal: a morte.
9. A incorporação linguística de termos da cultura imigrante revela uma das características do Modernismo de primeira fase: a busca de uma identidade nacional.
10. O texto, em sua totalidade, apresenta-se no tempo pretérito, mantendo a tradição, já que é uma espécie derivada do gênero épico.
A alternativa que contempla a sequência correta dos julgamentos das afirmações é:
V, V, F, F, F, V, V, F, F, V.
V, V, F, F, V, F, V, F, V, V.
F, F, V, F, V, V, V, V, F, F.
F, V, F, V, F, F, V, V, V, F.
V, F, V, F, F, F, V, F, V, V.