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Texto V
A moça tecelã
Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear. Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte. Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros,bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza. Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias. Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado. Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio do ponto dos sapatos, quando bateram à porta. Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida. E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou o homem. Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.
— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos. E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.
Só esperou anoitecer. Levantou-se, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear. Segurou a lançadeira ao contrário, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. E novamente se viu na sua casa pequena. A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Então, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, que a manhã repetiu na linha do horizonte.
Fonte: COLASSANTI, M. A moça tecelã. In: COLASSANTI, M. Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento. Rio de Janeiro: Global Editora, 2000. Disponível em: http://www.releituras.com/i_ana_mcolasanti.asp. Acesso em 15/06/2015. Adaptado.
O personagem é um dos elementos essenciais da narrativa, juntamente com o narrador, o enredo, o tempo e o espaço.
A falta de nomes de personagens desse texto atribui à narrativa um significado de
Incomunicabilidade.
Inverossimilhança.
Especificidade.
Universalidade.