Leia e analise os versos a seguir, para resolver a questão.
Texto I
Cantiga de enganar.
O mundo não vale o mundo,
meu bem.
Eu plantei um pé-de-sono,
brotaram vinte roseiras.
Se me cortei nelas todas
e se todas se tingiram
de um vago sangue jorrado
ao capricho dos espinhos,
não foi culpa de ninguém.
O mundo,
meu bem,
não vale
a pena e a face serena
vale a face torturada.
[...]
Andrade, Carlos Drummond de. Claro enigma – 1.ed. – São Paulo: Companhia da Letras, 2012. p. 35-7.
Texto II
Amar
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados amar?
[...]
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medroso, paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
Andrade, Carlos Drummond de. Claro enigma – 1.ed. – São Paulo: Companhia da Letras, 2012. p.43.
Os textos, em consonância com a leitura da obra na íntegra, e tendo por base os parâmetros ideológicos de Claro enigma, nos permitem afirmar corretamente que
o texto 1 mostra a ironia de um eu lírico desencantado com a existência, ou com o que sobrou dela, num diálogo com A máquina do mundo, enquanto o texto 2 evoca o amor como elemento de conexão do homem com seu passado, como ocorre em A mesa.
o texto 1 retoma o tom introspectivo de poemas que reverberam a angústia do homem na busca de um sentido para a vida, como em Perguntas em forma de cavalo marinho, enquanto o texto 2 simplifica a existência ao condicioná-la ao amor, fonte máxima de prazer e dor.
o texto 1 registra um eu lírico desencantado com a vida, repercutindo o tom melancólico que se observa em textos como Dissolução; já o eu lírico do texto 2 fala da experiência amorosa de caráter compulsório, pois considera o amor uma espécie de condenação involuntária.
o texto 1 reforça o tom niilista que acompanha os demais poemas do livro, como vemos no poema Oficina Irritada, enquanto que o texto 2 retoma a necessidade de espalhar o amor como única maneira de reagir à destruição imanente ao ser humano.
o texto 1 tem caráter social, pois promove uma reflexão acerca do estar em um mundo desfigurado no período pós Segunda Guerra, enquanto que o texto 2 retoma a busca pelo equilíbrio por meio do amor, individual e coletivo, como também se observa em Memória.