Leia a carta de Graciliano Ramos a Heloísa Medeiros, para as questão.
A HELOÍSA MEDEIROS
Por que não te deixaste ficar onde estavas?
Heloísa: Chegaram-me as duas linhas e meia que me escreveste. Pareceram-me feitas por uma senhora
muito séria, muito séria! muito antiga, muito devota, dessas que deitam água benta na tinta.
Tanta gravidade, tanta medida, só vejo em documentos oficiais. Até sinto desejo de começar esta carta
assim: "Exma. Sra.: tenho a honra de comunicar a V. Exa., etc".
Onze palavras! Imaginas o que um indivíduo experimenta ao receber onze palavras frias da criatura que
lhe tira o sono? Não imaginas. E sabes o que vem a ser isto de passar horas acordado, sonhando coisas
absurdas? Não sabes. Pois eu te conto.
Sento-me à banca, levado por um velho hábito, olho com rancor uma folha de papel, que teima em
tornar-se branca, penso que o Natal é uma festa deliciosa. Os bazares, a delegacia de polícia, a procissão de
Nossa Senhora do Amparo... E depois o jogo dos disparates, excelente jogo. "Iaiá caiu no poço". Ora o poço!
Quem caiu no poço fui eu.
Principio uma carta que devia ter escrito há três meses, não posso concluí-la. Fumo cigarros sem conta,
olhando um livro aberto, que não leio. Dança-me na minha cabeça uma chusma de ideias desencontradas. Entre
elas, tenaz, surge a lembrança de uma criaturinha a quem eu disse aqui em casa, depois da prisão do vigário,
nem sei que tolices.
Apaga-se a luz, deito-me. O sono anda longe. Que vieste fazer em Palmeira? Por que não te deixaste
ficar onde estavas?
Não consigo dormir. O nordeste, lá fora, varre os telhados. Na escuridão vejo distintamente essa mancha
que tens no olho direito e penso em certa conversa de cinco minutos, à janela do reverendo. Por que me falaste
daquela forma? Desejei que o teto caísse e nos matasse a todos.
Andei criando fantasmas. Vi dentro de mim outra muito diferente da que encontrei naquele dia.
Por que me quiseste? Deram-te conselhos? Por que apareceste mudada em vinte e quatro horas? Eu te
procurei porque endoideci por tua causa quando te vi pela primeira vez.
É necessário que isto acabe logo. Tenho raiva de ti, meu amor.
Fui visitar o Padre Macedo. Falou-me de ti, mas o que disse foi vago, confuso, diante de dez pessoas. É
triste que, para ter notícias tuas, minha filha, eu as ouça em público. Foram minhas irmãs que me disseram o dia
de teu aniversário e me deram teu endereço.
Tinhas razão quando afirmaste que entre nós não havia nada. Muito me fazes sofrer.
É preciso que tenhas confiança em mim, que me escrevas cartas extensas, que me abras largamente as
portas de tua alma.
Beijo-te as mãos, meu amor.
Recomendo-me aos teus, com especialidade a dona Lili, que vai ser minha sogra, diz ela. Acho-a boa
demais para sogra.
Amo-te muito. Espero que ainda venhas a gostar de mim um pouco. Teu Graciliano. Palmeira, 16 de
janeiro de 1928.
RAMOS, Graciliano. A HELOÍSA MEDEIROS. Por que não te deixaste ficar onde estavas? In: Cartas. Rio de Janeiro: Record, 1992. p. 89- 90.
O gênero carta corresponde ao domínio dos textos de cunho memorialista. Afrânio Coutinho, ao estudar tais escritos memorialistas de Graciliano Ramos, comenta que “[a]s memórias põe maior relevo sobre pessoas e coisas contemporâneas do autor e os acontecimentos que testemunhou. Muitas se limitam à narrativa dos fatos que estavam dentro do raio de observação do memorialista. Visto que passam pelo crivo de um temperamento, de um caráter, de uma intenção, as memórias não oferecem grande segurança como fonte histórica. O autor conta o que viu e o que viveu, intercalando amiúde os seus comentários, irônicos, críticos, mordazes, assim prejudicando a objetividade do relato.” COUTINHO. Afrânio. Notas de teoria literária. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 89.
Acerca do gênero carta, memória, tempo e construção narrativa, identifique a alternativa correta, tendo como referência Afrânio Coutinho e a carta de Graciliano Ramos a Heloísa Ramos:
A narrativa memorialista em questão expõe uma linguagem muito mais afetiva, menos concisa e despojada daquela que o autor emprega em suas narrativas ficcionais, o que prejudica, segundo Afrânio Coutinho, a inteligibilidade do texto.
A necessidade que determina o gênero carta pressupõe a defesa de certos pontos de vista, os quais são confirmados pela recorrência da utilização de frases interrogativas dirigidas ao(à) destinatário(a), o que denota, garantidamente, confirmação aos questionamentos.
A categoria tempo, no gênero carta, é suprimida e, por isso, Coutinho afirma que as memórias não oferecem grande segurança como fonte histórica.
Os textos memorialistas, como é o caso da carta de Graciliano Ramos, apresentam focalização em primeira pessoa, o que confere seletividade e envolvimento do narrador com os fatos narrados, mesmo que de cunho histórico.
A construção narrativa, no gênero carta, enquadra-se em tipos textuais pré-determinados, com rigor de forma e regras específicas a serem seguidas, em que, predominantemente e objetivamente o narrador descreve fatos.