Kehinde
O meu nome é Kehinde porque sou uma ibêji* e nasci por último. Minha irmã nasceu primeiro e por isso se chamava Taiwo. Antes tinha nascido meu irmão Kokumo, e o nome dele significava “não morrerás mais, os deuses te segurarão”. O Kokumo era um abiku**, como a minha mãe. O nome dela, Dúróorîîke, era o mesmo que “fica, tu serás mimada”. A minha avó Dúrójaiyé tinha esse nome porque também era uma abiku, e o nome dela pedia “fica para gozar a vida, nós imploramos”. Assim são os abikus, espíritos amigos há mais tempo do que qualquer um de nós pode contar, e que, antes de nascer, combinam entre si que logo voltarão a morrer para se encontrarem novamente no mundo dos espíritos. Alguns abikus tentam nascer na mesma família para permanecerem juntos, embora não se lembrem disso quando estão aqui no ayê, na terra, a não ser quando sabem que são abikus. Eles têm nomes especiais que tentam segurá-los vivos por mais tempo, o que às vezes funciona. Mas ninguém foge ao destino, a não ser que Ele queira, porque, quando Ele quer, até água fria é remédio.
* ibêji: assim são chamados os gêmeos, entre os povos iorubás. ** abiku: criança nascida para morrer
Ana Maria Gonçalves. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2007.
No fragmento do romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, narrado por uma mulher que vem escravizada para o Brasil no século XIX, a presença da multiculturalidade nas práticas das personagens, um dos legados da modernidade para a literatura brasileira contemporânea, é evidenciada
pelo emprego da primeira pessoa, que garante objetividade à narrativa.
pela sintaxe do texto, em que predominam frases simples, em ordem direta.
pelo uso de palavras e nomes próprios de origem iorubá, acompanhados de seus significados.
pela apresentação de uma paisagem natural estrangeira pouco familiar ao leitor brasileiro.