José Pereira da Graça Aranha nasceu, em São Luís do Maranhão, a 21 de junho de 1868. Foi nomeado, em 1890, Juiz Municipal em Cachoeiro de Santa Leopoldina, no Espírito Santo, onde recolheu material para a sua obra de maior interesse, que publicaria doze anos depois, Canaã. De acordo com a Bíblia, Canaã era a terra prometida por Deus a Abraão e descendentes. Por extensão, Canaã, na obra literária, poderia ser considerado um lugar paradisíaco na terra.
Nesse romance ideológico, Graça Aranha expõe uma crítica à fase em que o poder político e o social brasileiros sofrem influências de ricos cafeicultores no Sudeste do Brasil e do fluxo de imigrantes alemães, que, então, substituíam a mão de obra escrava dos recém-libertados, marginalizados e injustiçados, em regiões do Espírito Santo.
Leia o excerto para responder a questão.
O estrangeiro apertou a mão calosa e áspera do velho, que abriu os lábios numa rude expressão de riso, mostrando as gengivas roxas e desdentadas. A cafuza não se mexeu; apenas, mudando vagarosamente o olhar, descansou-o, cheio de preguiça e desalento, no rosto do viajante. A criança acolheu-se a ela, boquiaberta, com a baba a escorrer dos beiços túmidos.
[...]
— Mora aqui há muito tempo? perguntou Milkau.
— Fui nascido e criado nessas bandas, sinhô moço... Ali perto do Mangaraí.
— E, tateando o espaço, estendia a mão para o outro lado do rio. — Não vê um casarão lá no fundo? Foi ali que me fiz homem, na fazenda do Capitão Matos, defunto meu sinhô, que Deus haja! O estrangeiro, acompanhando o gesto, apenas divisava ao longe um amontoado de ruínas que interrompia a verdura da mata.
E a conversa foi continuando por uma série de perguntas de Milkau sobre a vida passada daquela região, às quais o velho respondia gostoso, por ter ocasião de relembrar os tempos de outrora, sentindo-se incapaz, como todos os humildes e primitivos, de tomar a iniciativa dos assuntos.
[...]
— Ah, tudo isto, meu sinhô moço, se acabou... Cadê fazenda? Defunto meu sinhô morreu, filho dele foi vivendo até que governo tirou os escravos. Tudo debandou. Patrão se mudou com a família para Vitória, onde tem seu emprego; meus parceiros furaram esse mato grande e cada um levantou casa aqui e acolá, onde bem quiseram. Eu com minha gente vim para cá, para essas terras do seu coronel. Tempo hoje anda triste. Governo acabou com as fazendas, e nos pôs todos no olho do mundo, a caçar de comer, a comprar de vestir, a trabalhar como boi para viver. Ah! tempo bom de fazenda!
[...]
— Mas, meu amigo — disse Milkau —, você aqui ao menos está no que é seu, tem sua casa, sua terra, é dono de si mesmo.
— Qual terra, qual nada... Rancho é do marido de minha filha, que está aí sentada, terra é de seu coronel, arrendada por dez mil-réis por ano. Hoje em dia tudo aqui é de estrangeiro, Governo não faz nada por brasileiro, só pune por alemão...
O fragmento a seguir é um dos diálogos entre os dois estrangeiros que protagonizam Canaã.
— Parece que já vi este quadro em algum lugar — disse Milkau, cismando, — Mas não, este ar, este conjunto suave, este torpor instantâneo, e que se percebe vai passar daqui a pouco, é seguramente a primeira vez que conheço.
— E por quanto tempo aqui ficaremos? — disse o outro num bocejo de desalento; e o seu olhar pairava preguiçosamente sobre a paisagem.
— Não meço o tempo — respondeu Milkau —, porque não sei até quando viverei, e agora espero que este seja o quadro definitivo da minha existência. Sou um imigrado, e tenho a alma do repouso; este será o meu último movimento na terra...
— Mas nada o agita? Nada o impelirá para fora daqui, fora desta paz dolorosa, que é uma sepultura para nós?...
— Aqui fico. E se aqui está a paz, é a paz que procuro exatamente...Eu me conservarei na humildade; em torno de mim desejarei uma harmonia infinita.
ARANHA, G. (1868-1931). Canaã. 3 ed. São Paulo: Martins Claret, 2013.
A relação discurso/personagem está representada, corretamente, na seguinte associação:
a intenção de Lentz em garantir aos habitantes daquele lugar uma boa convivência com os habitantes daquele aprazível lugar.
a visão latente dos dois estrangeiros em resgatar memórias e saberes a fim de atender às necessidades sociais dos ainda cativos da hipocrisia dos proprietários das fazendas.
a mentalidade de Milkau marcada por uma sutil ambição e um pacto com Lentz, compondo assim uma liderança política naquela região.
a perseverança de Lentz em se manter, como Milkau, ativo e animado para conhecer a tradição significativa dos ancestrais daquela gente.
o ufanismo entusiasta e previsível do estrangeiro Milkau sobre essa terra do seu imaginário, em que pretendera uma vida útil e agradável vida social.