Irene no Céu
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:
- Licença meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir
licença.
(Manuel Bandeira)
Essa Negra Fulô
Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo)
no bangüê dum meu avô
uma negra bonitinha,
chamada negra Fulô.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
— Vai forrar a minha cama,
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!
Essa negra Fulô!
Essa negrinha Fulô
ficou logo pra mucama,
pra vigiar a Sinhá
pra engomar pro Sinhô!
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!
Essa negra Fulô!
“Era um dia uma princesa
que vivia num castelo
que possuía um vestido
com os peixinhos do mar.
Entrou na perna dum pato
saiu na perna dum pinto
o Rei-Sinhô me mandou
que vos contasse mais cinco.”
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô? Ó Fulô?
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
“Minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou.”
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô? Ó Fulô?
(Era a fala da Sinhá
Chamando a negra Fulô.)
Cadê meu frasco de cheiro
Que teu Sinhô me mandou?
— Ah! Foi você que roubou!
Ah! Foi você que roubou!
O Sinhô foi ver a negra
levar couro do feitor.
A negra tirou a roupa.
O Sinhô disse: Fulô!
(A vista se escureceu
que nem a negra Fulô.)
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê meu lenço de rendas,
Cadê meu cinto, meu broche,
Cadê o meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você que roubou.
Ah! foi você que roubou.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
O Sinhô foi açoitar
sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro pulou
nuinha a negra Fulô.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê, cadê teu Sinhô
que Nosso Senhor me mandou?
Ah! Foi você que roubou,
foi você, negra fulô?
Essa negra Fulô!
(Jorge de Lima)
NEGRA
A negra para tudo
a negra para todos
a negra para capinar plantar
regar
colher carregar empilhar no paiol
ensacar
lavar passar remendar costurar
cozinhar rachar lenha
limpar a bunda dos nhozinhos
trepar.
A negra para tudo
nada que não seja tudo tudo tudo
até o minuto de
(único trabalho para seu proveito
exclusivo)
morrer.
(Carlos Drummond de Andrade)
Nos três poemas mencionados anteriormente, há um tema em comum, a situação étnica do negro no Brasil, embora a abordagem não seja a mesma.
Em Essa Negra Fulô, o uso de expressões próprias da linguagem erudita comprova a origem humilde de Jorge de Lima. Nascido em Alagoas, possui um nível baixo de escolaridade, aspecto inerente à produção poética do autor.
A linguagem utilizada nos poemas reflete a situação de submissão imposta aos africanos que viveram aqui no Brasil. Além disso, nos três poemas, o eu poético trata, especialmente, da imagem da mulher negra, ou como escrava, ou em decorrência da situação em que viveu no passado.
A sensualidade da mulher é o tema de NEGRA, de Drummond, expresso de modo objetivo, claro e contundente no último verso da primeira estrofe, quando o poeta usa o verbo “trepar” no sentido denotativo.
Em Irene no céu, há um tom carinhoso e meigo, quando o eu poético analisa o comportamento de Irene e a coloca em um bom lugar após a morte. Mesmo assim, a concepção de submissão e de irreverência se revela quando São Pedro ordena a Irene: “Entra, Irene, / você não precisa pedir licença”.
Há, nos três poemas produzidos por poetas brancos, certo desprezo pelos negros, percebido na linguagem utilizada pelo eu poético de cada um deles e na falta de confiança das sinhás em relação às suas mucamas.