INSTRUÇÃO: Responder à questão com base nos textos 1, 2, 3 e 4.
TEXTO 1
Nunca antes os homens possuíram tamanha mo-
bilidade geográfica, o que faz com que os sentimentos
comunitários percam centralidade. (...) Dormir num
país e acordar em outro não implica apenas uma
[5] espécie de aceleração do tempo, mas também uma
possível transformação da identidade do migrante,
que, longe de casa, deixa de enxergar no outro o
reconhecimento de si.
(...)
[10] O que quer dizer que o espaço, hoje mais do que
nunca, é constitutivo da personagem, seja ela nômade
ou não. Só convém lembrar que personagens efetiva-
mente fixas na sua comunidade estão quase ausentes
da narrativa brasileira contemporânea (era muito mais
[15] fácil encontrá-las nos romances regionalistas). Afinal, o
país se urbanizou em um período muito curto – o cen-
so de 1960 registrava 45% de brasileiros vivendo em
cidades, número que chegaria a 56% em 1970 e a 81%
em 2000 – e a literatura acompanhou a migração para
[20] as grandes cidades, representando de modo menos
ou mais direto as dificuldades de adaptação, a perda
dos referenciais e os problemas novos que foram
surgindo com a desterritorialização. Assim, o espaço
da narrativa brasileira atual é essencialmente urbano
[25] ou, melhor, é a grande cidade, deixando para trás
tanto o mundo rural quanto os vilarejos interioranos.
A cidade é um símbolo da sociabilidade humana,
lugar de encontro e de vida em comum – e, neste
sentido, seu modelo é a polis grega. Mas é também
[30] um símbolo da diversidade humana, em que convivem
massas de pessoas que não se conhecem, não se
reconhecem ou mesmo se hostilizam; e aqui o modelo
não é mais a cidade grega, e sim Babel. Mais até do
que a primeira, esta segunda imagem, a da desarmo-
[35] nia e da confusão, é responsável pelo fascínio que as
cidades exercem, como locais em que se abrem todas
as possibilidades.
Adaptado de: DALCASTAGNÈ, Regina. Sombras da cidade: o espaço na narrativa brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, v. 21, p. 33-53, 2003. Disponível em: http://seer.bce.unb.br/index.php/estudos/article/ viewFile/2200/1757.
TEXTO 2
Por volta de 1914, Galib inaugurou o restauran-
te Biblos no térreo da casa. O almoço era servido
às onze, comida simples, mas com sabor raro. Ele
mesmo, o viúvo Galib, cozinhava, ajudava a servir
[5] e cultivava a horta, cobrindo-a com um véu de tule
para evitar o sol abrasador. No Mercado Municipal,
escolhia uma pescada, um tucunaré ou um matrinxã,
recheava-o com farofa e azeitonas, assava-o no forno
de lenha e servia-o com molho de gergelim. Entrava
[10] na sala do restaurante com a bandeja equilibrada
na palma da mão esquerda; a outra mão enlaçava
a cintura de sua filha Zana. Iam de mesa em mesa
e Zana oferecia guaraná, água gasosa, vinho. O pai
conversava em português com os clientes do restau-
[15] rante: mascateiros, comandantes de embarcação,
regatões, trabalhadores do Manaus Harbour. Desde
a inauguração, o Biblos foi um ponto de encontro de
imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos que
moravam na praça Nossa Senhora dos Remédios e
[20] nos quarteirões que a rodeavam. Falavam português
misturado com árabe, francês e espanhol, e dessa
algaravia surgiam histórias que se cruzavam, vidas em
trânsito, um vaivém de vozes que contavam um pouco
de tudo: um naufrágio, a febre negra num povoado
[25] do rio Purus, uma trapaça, um incesto, lembranças
remotas e o mais recente: uma dor ainda viva, uma
paixão ainda acesa, a perda coberta de luto, a es-
perança de que os caloteiros saldassem as dívidas.
Comiam, bebiam, fumavam, e as vozes prolongavam
[30] o ritual, adiando a sesta.
Adaptado de: HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, São Paulo, 2006.
TEXTO 3
Da Minha Aldeia
Da minha aldeia vejo o quanto da terra se pode ver
[do Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra
[qualquer
[5] Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui da minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista a chave,
[10] Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para
[longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os
[nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza
[15] [é ver.
Alberto Caeiro/PESSOA, Fernando. O Guardador de Rebanhos, In: Poemas de Alberto Caeiro. Lisboa: Ática. 1946.
Assinale a alternativa correta acerca da relação que se pode estabelecer entre os textos 1, 2, 3 e 4.
A oposição entre cidade e campo aparece nos textos 1, 2 e 3.
O texto 4 pode servir como exemplo para a “desterritorialização” descrita na linha 23 do texto 1.
O trecho compreendido entre as linhas 16 e 30 do texto 2 exemplifica o modelo de cidade identificado como “Babel” pelo texto 1.
As expressões, no texto 2, “um naufrágio” (linha 24), “a febre negra num povoado do rio Purus” (linhas 24 e 25), “uma trapaça” (linha 25) e “um incesto” (linha 25) podem ser entendidas como algumas das situações que levam os personagens do texto 4 a “viver num lixão”.