INSTRUÇÃO: Para responder à questão, leia o trecho a seguir, de autoria do português Gil Vicente.
“Vem um Corregedor, carregado de feitos, e, chegando à barca do Inferno, com sua vara na mão, diz:
CORREGEDOR Hou da barca!
DIABO Que quereis?
CORREGEDOR Está aqui o senhor juiz?
DIABO Oh amador de perdiz
gentil cárrega trazeis!(quantos processos trazeis)
CORREGEDOR No meu ar conhecereis (Pelo meu jeito conhecereis)
que nom é ela do meu jeito. (que não venho satisfeito)
DIABO Como vai lá o direito?
CORREGEDOR Nestes feitos o vereis.
DIABO Ora, pois, entrai. Veremos que diz i (aqui) nesse papel...
CORREGEDOR E onde vai o batel (a barca)?
DIABO No Inferno vos poeremos. (No inferno vos colocaremos)
CORREGEDOR Como? À terra dos demos
há-de ir um corregedor?
DIABO Santo descorregedor,
embarcai, e remaremos!
Ora, entrai, pois que viestes!
CORREGEDOR Non est de regulae juris, não! (Do latim, ‘não é de acordo com a lei’)
DIABO Ita, Ita! Dai cá a mão!
Remaremos um remo destes.
Fazei conta que nacestes
pera nosso companheiro. (...)
CORREGEDOR Oh, renego da viagem (Oh recuso a viagem)
e de quem m’há de levar! (e quem me há de levar!)
Há qui meirinho do mar? (Há aqui no mar funcionários da justiça?) ...”
Todas as afirmativas estão corretamente associadas ao excerto e seu contexto, EXCETO:
Este fragmento pertence à obra Auto da barca do inferno, peça teatral na qual Anjo e Diabo disputam as almas que serão destinadas, respectivamente, à Glória ou ao Inferno.
Uma das marcas de Gil Vicente é a fina crítica aos poderosos da sociedade através do humor, argumento aqui exemplificado pelo embate entre a linguagem mais afetada do corregedor e a irônica e debochada do diabo.
No excerto em destaque, percebe-se um personagem da magistratura insatisfeito com o seu destino, já que o corregedor entende que sua profissão deveria conceder-lhe certos privilégios.
Devido a sua extrema religiosidade, o corregedor não aceita o Inferno como seu destino final.
Gil Vicente critica, na obra à qual este trecho pertence, o abuso do poder, a arrogância atrelada à profissão, a hipocrisia de uma sociedade corrompida, o que demonstra a atualidade de um texto escrito no século XVI.