UFPA 2012

IMPÁVIDA CLAVA FORTE

Roberto Pompeu de Toledo

 

  Quem não conhecia a cantora Vanusa, ou não se lembrava dela, agora já a conhece e tem motivos

para dela não mais se esquecer. Ela fez seu triunfal ingresso, ou retorno, à fama com uma interpretação do

Hino Nacional que circula amplamente na internet. Para os poucos que ainda não viram o vídeo, feito durante

uma cerimônia na Assembléia Legislativa paulista, a cantora, cuja voz arrastada, de tonalidades

5 sonambúlicas, já fazia suspeitar de algo errado desde o início, a certa altura se atrapalha de vez e faz a

melodia descasar-se sem remédio da letra, e a letra por sua vez livrar-se da sequência em que foi composta,

a terra mais garrida estranhando-se com o sol do Novo Mundo, o gigante pela própria natureza irrompendo

em lugar que nunca antes frequentara. O braço forte ganhou reforços, e virou braços fortes. O berço

esplêndido transmudou-se em verso esplêndido. E, na mais estonteante estocada na estabilidade das

10  estrofes, entoou: “És belo és forte és risonho límpido se em teu formoso risonho e límpido a imagem do

Cruzeiro” – assim mesmo, não só deslocando ou pulando palavras, como terminando abruptamente na

palavra “Cruzeiro”, desprovida do socorro do “resplandece”.

  A performance de Vanusa passa de computador a computador para fazer rir. Este artigo tem por

objetivo defendê-la. Que atire a primeira pedra quem nunca confundiu os versos de ida (“Ouviram do

15 Ipiranga” etc.) com os da volta (“Deitado eternamente em berço esplêndido”). Que só continue a ridicularizar

a cantora quem nunca removeu os raios fúlgidos para o lugar do raio vívido, ou vice-versa. Vanusa disse que

estava sob efeito de remédios, daí seus atropelos. Não há dúvida, pelo andar hesitante de seu desempenho,

e pelo tom resmungado da voz, de que estava fora de controle. É pena. Fosse deliberada, e interpretada com

arte, sua versão do hino teria dois altos destinos. Primeiro, iria se revestir do caráter de uma variação,

20 interessante por ser uma espécie de comentário à composição tal qual a conhecemos. Não seria uma

variante tão bela como a Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro, de Gottschalk, mas teria

seus encantos. Segundo, assumiria a feição de uma leitura crítica do hino. Serviria para mostrar, com a

insistente troca de palavras e de versos, como a letra é difícil, e extrairia um efeito cômico – deliberadamente

cômico – das confusões que pode causar na mente de quem a entoa.

25  O inglês Lewis Carroll (1832-1898), autor de Alice no País das Maravilhas, criador do Chapeleiro

Maluco e da festa de desaniversário, levou seu gosto pelo absurdo para a criação de um poema feito de

palavras inventadas que se alternam com outras existentes, e cuja bonita sonoridade contrasta com o

enigma de um significado impossível de ser alcançado. O poema chama-se Jabberwocky, e jabberwocky, em

inglês, passou a significar um texto brincalhão, composto em linguagem inventada, mas parecendo real,

30 sonora e sem sentido. Uma tradução do Jabberwocky para o português, do poeta Augusto de Campos,

começa assim: “Era briluz. As lesmolisas touvas / Roldavam e relviam nos gramilvos. / Estavam mimsicais as

pintalouvas / E os momirratos davam grilvos”.

  Não. Não é que o Hino Nacional seja exatamente um jabberwocky. Não há nele palavras inventadas.

Mas a combinação dos raios fúlgidos com o penhor dessa igualdade, do impávido colosso com o florão da

35 América e do lábaro estrelado com a clava forte tem tudo para produzir um efeito jabberwocky para a

multidão de brasileiros com ouvidos destreinados para os preciosismos parnasianos. A presença de palavras

familiares no meio de outras estranhas, como no jabberwocky, confere a certeza de que caminhamos num

terreno conhecido – no nosso caso, a língua portuguesa; no do jabberwocky original, a língua inglesa. Ao

mesmo tempo, o inalcançável significado das palavras nos transfere para um universo em que a realidade se

40 perde numa nebulosa onírica. Já houve, e ainda deve haver, movimentos para mudar a letra do Hino

Nacional. Não, por favor, não – seria uma pena. Seu caráter jabberwocky lhe cai bem. Se à sonoridade das

palavras se contrapõe um misterioso significado, tanto melhor: o hino fica instigante como encantamento de

fada, e impõe respeito como reza em latim. Vanusa devia aproveitar a experiência e a reconquistada fama

para aprimorar uma versão cara limpa, sem voz arrastada nem tons sonambúlicos, de sua interpretação. Ela

45 explicita como nenhuma outra o charme jabberwocky da letra de Osório Duque Estrada.

VEJA, 23 de setembro de 2009, p. 150.

A respeito do trecho

 

“Não. Não é que o Hino Nacional seja exatamente um jabberwocky. Não há nele palavras inventadas. Mas a combinação dos raios fúlgidos com o penhor dessa igualdade, do impávido colosso com o florão da América e do lábaro estrelado com a clava forte tem tudo para produzir um efeito jabberwocky...” (linhas 33 a 35),

 

é correto afirmar que a combinação dos termos em “raios fúlgidos com penhor dessa igualdade”, em “impávido colosso com o florão da América” e em “lábaro estrelado com clava forte” produz um efeito jabberwocky devido ao(à)

a

alteração que esses termos sofrem ao serem cantados, como, por exemplo, a substituição de penhor dessa igualdade por senhor dessa igualdade.

b

estranheza de sentido existente entre “raios fúlgidos” e “penhor dessa igualdade”, entre “impávido colosso” e “florão da América” e entre “lábaro estrelado” e “clava forte”.

c

conotação presente em raios fúlgidos, impávido colosso e lábaro estrelado, misturada à denotação de penhor dessa igualdade, florão da América e clava forte.

d

mistura de singular e plural em “raios fúlgidos com penhor dessa igualdade” (linha 34), semelhante ao que o autor observou no trecho cantado por Vanusa: “O braço forte ganhou reforços, e virou braços fortes.” (linha 08).

e

fato de o povo brasileiro não ter interesse pelo preciosismo parnasiano.

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B
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