I.
Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.
Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropólogo, o Visconde de Cairu: — É mentira muitas vezes repetida.
[...]
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.
A alegria é a prova dos nove.
ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. Oswald de Andrade. São Paulo: Nova Cultura,1988. p.135-138-139.
II.
[...]Peri, de pé, junto de Cecília, parecia querer ainda protegê-la contra a morte inevitável que a ameaçava. Dir-se-ia que o índio esperava algum socorro imprevisto, algum milagre que salvasse sua senhora; e que aguardava o momento de fazer por ela tudo quanto fosse possível ao homem.
D. Antônio, vendo a resolução que se pintava no rosto do selvagem, tornou-se ainda mais pensativo; quando, passado esse momento de reflexão, ergueu a cabeça, seus olhos brilhavam com um raio de esperança.
Atravessou o espaço que o separava de sua filha, e, tomando a mão de Peri, disse-lhe com uma voz profunda e solene:
— Se tu fosses cristão, Peri!...
O índio voltou-se extremamente admirado daquelas palavras.
— Por quê?... perguntou ele.
— Por quê?... disse lentamente o fidalgo. Porque se tu fosses cristão, eu te confiaria a salvação de minha Cecília, e estou convencido de que a levarias ao Rio de Janeiro, à minha irmã.
O rosto do selvagem iluminou-se; seu peito arquejou de felicidade; seus lábios trêmulos mal podiam articular o turbilhão de palavras que lhe vinham do íntimo da alma.
— Peri quer ser cristão! exclamou ele.
D. Antônio lançou-lhe um olhar úmido de reconhecimento.
— A nossa religião permite, disse o fidalgo, que na hora extrema todo o homem possa dar o batismo. Nós estamos com o pé sobre o túmulo. Ajoelha, Peri!
O índio caiu aos pés do velho cavalheiro, que impôs-lhe as mãos sobre a cabeça.
— Sê cristão! Dou-te o meu nome.
Peri beijou a cruz da espada que o fidalgo lhe apresentou, e ergueu-se altivo e sobranceiro, pronto a afrontar todos os perigos para salvar sua senhora.
ALENCAR, José de. O guarani. 7.ed. São Paulo: Ática, 1978. p. 201-202. (Série Bom Livro).
Comparando-se os textos I e II, é correto afirmar:
Ambos revelam um ideal de brasilidade ligado à herança colonial.
Os dois textos expressam o papel positivo do colonizador na definição do ser brasileiro.
Tanto no texto I quanto no texto II, há a rejeição dos valores patriarcais e a defesa da contribuição da mulher na vida social.
No texto I, ironiza-se a figura do índio descaracterizado e, no II, exalta-se o índio insubmisso a valores alheios à sua cultura.
O texto I revela uma visão crítica acerca do processo de construção da identidade cultural brasileira, enquanto o II exemplifica a proposta romântica de valorização do elemento indígena, idealizado segundo valores do passado europeu.