Há qualquer coisa de especial nisso de botar a cara na janela em crônica de jornal ‒ eu não fazia isso há muitos anos, enquanto me escondia em poesia e ficção. Crônica algumas vezes também é feita, intencionalmente, para provocar. Além do mais, em certos dias mesmo o escritor mais escolado não está lá grande coisa. Tem os que mostram sua cara escrevendo para reclamar: moderna demais, antiquada demais. Alguns discorrem sobre o assunto, e é gostoso compartilhar ideias. Há os textos que parecem passar despercebidos, outros rendem um montão de recados: “Você escreveu exatamente o que eu sinto”, “Isso é exatamente o que falo com meus pacientes”, “É isso que digo para meus pais”, “Comentei com minha namorada”. Os estímulos são valiosos pra quem nesses tempos andava meio assim: é como me botarem no colo ‒ também eu preciso. Na verdade, nunca fui tão posta no colo por leitores como na janela do jornal. De modo que está sendo ótima, essa brincadeira séria, com alguns textos que iam acabar neste livro, outros espalhados por aí. Porque eu levo a sério ser sério... mesmo quando parece que estou brincando: essa é uma das maravilhas de escrever. Como escrevi há muitos anos e continua sendo a minha verdade: palavras são meu jeito mais secreto de calar.
LUFT.L Pensar e transgredir. Rio de Janeiro Recor, 2004.
Os textos fazem uso constante de recursos que permitem a articulação entre suas partes. Quanto à construção do fragmento, o elemento
“nisso” introduz o fragmento “botar a cara na janela em crônica de jornal”.
“assim ”é uma paráfrase de “é como me botarem no colo”.
“isso” remete a “escondia em poesia e ficção”.
“alguns" antecipa a informação “É isso que digo para meus pais”.
“essa” recupera a informação anterior “janela do jornal”.
A questão avalia a compreensão dos mecanismos de coesão textual, especificamente o uso de pronomes e outras palavras para estabelecer referências dentro do texto. O objetivo é identificar a função correta de um dos elementos destacados.
Vamos analisar o elemento da alternativa correta:
A) "nisso” introduz o fragmento “botar a cara na janela em crônica de jornal”.
A expressão "nisso" é a contração da preposição "em" com o pronome demonstrativo "isso". No trecho "Há qualquer coisa de especial nisso de botar a cara na janela em crônica de jornal", o pronome "isso" funciona como um elemento catafórico. A catáfora ocorre quando um termo (neste caso, "isso") antecipa uma informação que será apresentada posteriormente no texto. Aqui, "isso" antecipa e aponta para a ideia que vem logo a seguir, introduzida pela preposição "de": "botar a cara na janela em crônica de jornal". Portanto, "nisso" (ou mais precisamente, o "isso" contido nele) introduz o fragmento mencionado, explicando qual é a "coisa especial". Esta análise está correta.
Agora, vamos entender por que as outras alternativas estão incorretas:
B) "assim ”é uma paráfrase de “é como me botarem no colo”.
No trecho "nesses tempos andava meio assim: é como me botarem no colo", a palavra "assim" é um advérbio de modo que indica um estado ou sentimento da autora. Os dois-pontos (:) introduzem uma explicação ou esclarecimento sobre esse estado. A frase "é como me botarem no colo" não é uma paráfrase (reafirmação com outras palavras) de "assim", mas sim uma explicação ou comparação que clarifica o sentido vago de "assim" naquele contexto. "Assim" aponta para a explicação que se segue.
C) “isso” remete a “escondia em poesia e ficção”.
No trecho "eu não fazia isso há muitos anos, enquanto me escondia em poesia e ficção", o pronome "isso" é um elemento anafórico, ou seja, ele retoma algo que foi dito anteriormente. O que a autora "não fazia há muitos anos"? O contexto anterior deixa claro que é "botar a cara na janela em crônica de jornal". Portanto, "isso" remete a essa ação (escrever crônicas para jornal) e não à ação de se esconder em poesia e ficção. A oração "enquanto me escondia..." indica uma simultaneidade ou contraste com o período em que não fazia "isso".
D) “alguns" antecipa a informação “É isso que digo para meus pais”.
No trecho "Alguns discorrem sobre o assunto, e é gostoso compartilhar ideias. Há os textos que parecem passar despercebidos, outros rendem um montão de recados: [...] 'É isso que digo para meus pais'", o pronome indefinido "Alguns" refere-se a uma parte dos leitores que reagem às crônicas discorrendo sobre o assunto. Ele não antecipa especificamente a citação "É isso que digo para meus pais". Essa citação é um exemplo do tipo de recado que outros leitores (não necessariamente os mesmos "alguns" que discorrem) enviam, como indicado pela frase "outros rendem um montão de recados".
E) “essa” recupera a informação anterior “janela do jornal”.
O texto apresenta dois usos de "essa" relevantes. Primeiro: "De modo que está sendo ótima, essa brincadeira séria...". Aqui, "essa" retoma anaforicamente a ideia geral de escrever crônicas para o jornal e a interação com os leitores, que a autora chama de "brincadeira séria". Não se refere apenas à "janela do jornal", que é o meio ou local de publicação. Segundo: "essa é uma das maravilhas de escrever". Neste caso, "essa" retoma a ideia expressa anteriormente: "levar a sério ser sério... mesmo quando parece que estou brincando". Em nenhum dos casos "essa" recupera apenas "janela do jornal".
Conclusão: A única alternativa que descreve corretamente a função coesiva do elemento destacado é a A, que identifica o uso catafórico de "nisso" para introduzir a ideia subsequente.
Para resolver esta questão, é fundamental entender os mecanismos de coesão textual, que são os recursos linguísticos usados para conectar as partes de um texto, garantindo sua unidade e clareza. Os principais mecanismos envolvidos aqui são:
Compreender a diferença entre anáfora e catáfora e identificar corretamente a que (ou quem) os pronomes e outras palavras se referem é crucial para a interpretação textual.
Identificar os elementos que concorrem para a progressão temática e para a organização e estruturação de textos de diferentes gêneros e tipos.