Fernando Sabino disse uma vez que fez muitos cursos, mas
ganhava a vida com o curso de datilografia. Posso dizer que ganhei
a vida com o curso de datilografia do meu amigo Geraldo Mayrink.
Conto.
[5] Primeiro, lembro a todos: naquele tempo, os anos 1960, era
perigoso ter amigos. Certos amigos. Você podia ser preso por
conhecer pessoas, por permitir que um camarada da vida inteira
passasse uma noite na sua casa apenas para descansar.
Numa noite, agentes que trabalhavam para o governo apanharam
[10] a mim e ao Geraldo em nossos locais de trabalho. Fomos levados
num daqueles carros que se tornaram sinistros na época, espremidos
entre dois agentes, com metralhadoras na mão e pistolas na cintura.
Proibidos de falar um com o outro ou com eles.
Depois de inter rogados longamente, separadamente,
[15] alternadamente, como nossas histórias se casaram, eles disseram
que até poderíamos ser dispensados, mas teríamos de ficar até de
manhã, esperando a turma que renderia a deles, para datilografar as
informações dos nossos depoimentos. Nenhum deles sabia escrever
a máquina, como se dizia.
[20] Aí veio a presença de espírito do Geraldo. Ele se propôs, se
não se importassem, a datilografar o que havíamos contado. Para
surpresa nossa, aceitaram. Geraldo escreveu com aquela rapidez
dos bons datilógrafos de dez dedos e dos jornalistas seguros, trocou
pormenores com eles, finalizou, eles leram, passando o papel de uns
[25] para os outros, acharam o que estava o.k., nos libertaram e fomos
embora. Salvos.
Na segunda passada (27/08/2012), fez três anos que o Geraldo
morreu, e me lembrei dele, e de tudo isso. O bate-pronto dele e seu
curso de datilografia nos salvaram do pior naquela noite.
Adaptado de Ivan Angelo, Revista Veja São Paulo, 05/09/2012, p. 154
Assinale a alternativa correta.
Frases curtas e recursos de pontuação conferem ao texto ritmo que reflete o ideal do gênero a que pertence, uma vez que o autor parece estar de fato conversando com o leitor.
Construções sintáticas como nos libertaram e fomos embora (linhas 25 e 26) evidenciam a presença da norma culta da língua, denotando o caráter conservador do texto no uso da linguagem.
Fez três anos que o Geraldo morreu (linhas 27 e 28) exemplifica uma das possibilidades de concordância do verbo “fazer” nesse emprego, pois também é abonada pela norma culta a forma “fizeram três anos”.
A expressão bate-pronto (linha 28) refere-se exclusivamente, no texto, ao modo de Geraldo, amigo do autor, datilografar rapidamente.
Em eles disseram que até poderíamos ser dispensados (linhas 15 e 16), a partícula até denota temporalidade como em “ficaremos até a manifestação acabar”.