Famigerado
Foi de incerta feita — o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela. (...) O cavaleiro esse — o oh-homem-oh — com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida. (...)
"Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada..."
Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. (...)
Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara — evitava o de evitar. (...)
— "Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-megerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...? (...)
— Famigerado?
— "Sim senhor..." — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. —
Famigerado? Habitei preâmbulos. (...)
— Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável"...
(...)
Guimarães Rosa. In: Primeiras Estórias, Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 13.
Analise as afirmativas a seguir:
I. A narrativa em questão tem como ponto principal do enredo o significado da palavra “famigerado”, que põe em situação de confronto uma personagem letrada - o próprio narrador - e um perigoso jagunço, personagem popular da literatura sertaneja, conhecido e temido na região, que, ao chegar aturdido à residência do homem culto, deseja saber o significado da palavra “famigerado”.
II. É perceptível uma constante preocupação em ambas as personagens em descobrir o que há por trás das palavras, tendo em vista que o jagunço deseja ter a posse do conhecimento da palavra “famigerado”, da qual talvez dependesse suas próximas ações, e o narrador tenta descobrir a razão da curiosidade do jagunço em querer desvendar o significado de tal palavra.
III. Com a expressão “Foi de incerta feita”, a narrativa tende a centrar-se no espaço das personagens, realçando-lhes as características do tempo e do espaço psicológicos em detrimento das características físicas. Nesse momento, a realidade social inicia-se e põe em embate a força física do jagunço e a força intelectual do homem letrado.
IV. No conto em análise, ocorre um dualismo linguístico e social, representado pelo paroxismo das forças apresentadas pelo moço do Governo e o Jagunço versus o Jagunço e o homem letrado. Nesse sentido, verifica-se que tais forças coexistem e delineiam o poder de cada homem: o jagunço, a força física ou o homem culto, a força intelectual. Mas é o poder da palavra que detém a força maior na relação entre ambos; é ela que impõe medo e respeito, sapiência ou frouxidão.
V. Em Famigerado assim como nos demais contos de Primeiras Estórias, Rosa utiliza alguns dos principais recursos característicos de suas obras – regionalismos, neologismos, registros da oralidade e inventivas construções sintáticas e morfológicas. Sob esse aspecto, ele trata da metalinguagem e de como a linguagem se reflete no instrumento de diferenciação social.
Estão CORRETAS
I, II e III, apenas.
I e III, apenas.
II e III, apenas.
III, IV e V, apenas.
I, II, III, IV e V.