Escurece, e não me seduz
tatear sequer uma lâmpada.
Pois que aprouve1 ao dia findar,
aceito a noite.
E com ela aceito que brote
uma ordem outra de seres
e coisas não figuradas.
Braços cruzados.
Vazio de quanto amávamos,
mais vasto é o céu. Povoações
surgem do vácuo.
Habito alguma?
E nem destaco minha pele
da confluente escuridão.
Um fim unânime concentra-se
e pousa no ar. Hesitando.
E aquele agressivo espírito
que o dia carreia2 consigo,
já não oprime. Assim a paz,
destroçada.
Vai durar mil anos, ou
extinguir-se na cor do galo?
Esta rosa é definitiva,
ainda que pobre.
Imaginação, falsa demente,
já te desprezo. E tu, palavra.
No mundo, perene trânsito,
calamo-nos.
E sem alma, corpo, és suave.
(Claro enigma, 2012.)
1 aprazer: causar ou sentir prazer; contentar(-se).
2 carrear: carregar.
Personificação: recurso expressivo que consiste em atribuir propriedades humanas a uma coisa, a um ser inanimado ou abstrato.
(Dicionário Porto Editora da Língua Portuguesa. www.infopedia.pt. Adaptado.)
Verifica-se a ocorrência desse recurso no seguinte verso:
“Vazio de quanto amávamos,” (3a estrofe)
“E nem destaco minha pele” (4a estrofe)
“Esta rosa é definitiva,” (6a estrofe)
“Pois que aprouve ao dia findar,” (1a estrofe)
“No mundo, perene trânsito,” (7a estrofe)