Em suas obras, Clarice Lispector aborda com frequência o lado psicológico do indivíduo, analisando os dramas existenciais, as angústias dos personagens, os questionamentos que se fazem, em resumo, sua intimidade. O fato interessa menos, pois mais importante é a repercussão que esse fato causa no indivíduo. Para explorar esses aspectos, usa o fluxo de consciência (mescla de raciocínio lógico com impressões pessoais momentâneas), o que se traduz por uma não linearidade da narrativa.
O trecho em que essas características podem ser observadas com maior clareza é:
“Inclino-me sobre a carne, perdido. Quando finalmente consigo encará-la do fundo do meu rosto pálido, vejo que ele também se inclinou com os cotovelos apoiados sobre a mesa, a cabeça entre as mãos. E exatamente ele não suportava mais. As sobrancelhas grossas estavam juntas. A comida devia ter parado pouco abaixo da garganta sob a dureza da emoção, pois quando ele pôde continuar fez um gesto terrível de esforço para engolir e passou o guardanapo pela testa.”
LISPECTOR, C. O jantar. In: Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p.78.
“Então, como se todos tivessem tido a prova final de que não adiantava se esforçarem, com um levantar de ombros de quem estivesse junto de uma surda, continuaram a fazer a festa sozinhos, comendo os primeiros sanduíches de presunto mais como prova de animação que por apetite, brincando de que todos estavam morrendo de fome. O ponche foi servido, Zilda suava, nenhuma cunhada ajudou propriamente, a gordura quente dos croquetes dava um cheiro de piquenique; e, de costas para a aniversariante, que não podia comer frituras, eles riam inquietos.”
LISPECTOR, C. Feliz aniversário. In: Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 57.
“Ela não era bonita. Às vezes, como que o espírito a abandonava e então revelava-se o que, por uma vigilância sobre-humana — imaginava Otávio —, jamais se descobria. No rosto que então surgia, os traços limitados e pobres não tinham beleza própria. Nada restava do antigo mistério senão a cor da pele, creme, sombria, fugitiva. Se os instantes de abandono prolongavam-se e se sucediam, então ele via assustado a feiura, e mais que a feiura, uma espécie de vileza e brutalidade, alguma coisa cega e inapelável dominar o corpo de Joana como uma decomposição.”
LISPECTOR, C. Perto do Coração Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco,1998, p. 94.
“A vida se vingava de mim, e a vingança consistia apenas em voltar, nada mais. Todo caso de loucura é que alguma coisa voltou. Os possessos, eles não são possuídos pelo que vem, mas pelo que volta. Às vezes a vida volta. Se em mim tudo se quebrava à passagem da força, não é porque a função desta era a de quebrar: ela só precisava enfim passar, pois já se tornara caudalosa demais para poder se conter ou contornar — ao passar ela cobria tudo. E depois, como após um dilúvio, sobrenadavam um armário, uma pessoa, uma janela solta, três maletas. E isso me parecia o inferno, essa destruição de camadas e camadas arqueológicas humanas.”
LISPECTOR, C. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 70.
“Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados: contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos se presenteiam, por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho. Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de ouro àquela que hoje é minha mulher. Só muito tempo depois eu ia compreender que estar também é dar.”
LISPECTOR, C. Uma amizade sincera. In: A Legião Estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 87.