MENTIRINHAS
“É ingá”, ele diz enquanto chupa uma semente, a vagem aberta entre os dedos, e eu não consigo tirar os olhos daquele bigode desajeitado subindo e descendo, os pelos grisalhos amontoados num rosto queimado de sol. “Cê quer, Tininha?”, ele estende a mão com algumas daquelas sementes esquisitas, “não, vô, pode comer”. Ele olha divertido, como se fosse fazer piada, mas fica quieto, chupando sementes.
“Cê sabe, Tininha, cê não precisa ficar assim, né? Cê é moça nova, cê logo arruma outro rapaz”, ele fala olhando pra árvore, pra vagem, pra raiz. Nunca no meu olho. Nunca foi de jogar o olho no meu olho quando era coisa séria, só quando era de brincadeira. “Não é isso, vô. É que ele mentiu. Por que foi que ele mentiu? Por que não me falou logo que tinha esposa, que tinha filho? Por que me enrolou até agora? Dois anos, vô. Eu tava pensando em noivar. Agora não tenho mais nada.”
“É homem, Tininha”, ele fala cuspindo o caroço, como se lançasse feitiço: baba de sapo, perna de lagarto, um abracadabra brabo e viscoso. E eu aperto os dentes para não chorar de novo, mais uma vez, pra não me debulhar de lágrima imerecida. “Que que tem que é homem, vô? Só porque é homem tem que mentir? Vai me dizer que o senhor mentia pra vó?
Ele fica de olho comprido no horizonte, os dedos futucando outra vagem, como minhoquinhas na terra. “Menti pra muita gente, Tininha. Menti pros meus pais, pros professores, pros amigos, pra sua mãe... Menti pra sua vó... A vida é assim. Um monte de mentirinhas que a gente vai contando. Até pra gente mesmo”. Ele funga um pouco, limpa a testa com as costas da mão e fica quieto, o olho no ingá. Eu já menti pra caramba também, não sei por que o espanto. Minto desde criança, para não apanhar, para ganhar uma qualquer coisa a mais, dinheiro, uma bala, um dadinho de amendoim. Quem não mente?
“Cê arruma outro rapaz”, ele repete por fim, encerrando o assunto e levantando do banco de madeira mal feito. Vai arrastando um pé depois do outro na direção da cozinha e pela primeira vez na vida penso que talvez meu avô não tenha sido tão feliz quanto parecia quando contava as aventuras da juventude. O vô de repente era grande por dentro, maior do que eu nem sei. [...]
PRETTI, Thays. A mulher que ri. São Paulo: Editora Patuá, 2019.
Em “Eu já menti pra caramba também [...]”, a expressão em destaque
restringe-se à variedade padrão da língua.
é utilizada como um advérbio de intensidade.
é composta por uma preposição e um adjetivo.
indica o alvo da ação de mentir.
poderia ser omitida sem que isso causasse prejuízo semântico ao período.