Desde pequeno, tive tendência para personificar as
coisas. Tia Tula, que achava que mormaço fazia mal,
sempre gritava: “Vem pra dentro, menino, olha o
mormaço!” Mas eu ouvia o mormaço com M maiúsculo.
[5] Mormaço, para mim, era um velho que pegava crianças!
Ia pra dentro logo. E ainda hoje, quando leio que alguém
se viu perseguido pelo clamor público, vejo com estes
olhos o Sr. Clamor Público, magro, arquejante, de preto,
brandindo um guarda-chuva, com um gogó protuberante
[10] que se abaixa e levanta no excitamento da perseguição. E
já estava devidamente grandezinho, pois devia contar uns
trinta anos, quando me fui, com um grupo de colegas, a
ver o lançamento da pedra fundamental da ponte
Uruguaiana-Libres, ocasião de grandes solenidades, com
[15] os presidentes Justo e Getúlio, e gente muita, tanto assim
que fomos alojados os do meu grupo num casarão que
creio fosse a Prefeitura, com os demais jornalistas do
Brasil e Argentina. Era como um alojamento de quartel,
com breve espaço entre as camas e todas as portas e
[20] janelas abertas, tudo com os alegres incômodos e
duvidosos encantos de uma coletividade democrática.
Pois lá pelas tantas da noite, como eu pressentisse, em
meu entredormir, um vulto junto à minha cama, sentei-me
estremunhado* e olhei atônito para um tipo de chiru*, ali
[25] parado, de bigodes caídos, pala pendente e chapéu
descido sobre os olhos. Diante da minha muda
interrogação, ele resolveu explicar-se, com a devida
calma:
— Pois é! Não vê que eu sou o sereno...
Mário Quintana, As cem melhores crônicas brasileiras.
estremunhado: mal acordado.
chiru: que ou aquele que tem pele morena, traços acaboclados (regionalismo: Sul do Brasil).
No início do texto, o autor declara sua “tendência para personificar as coisas”. Tal tendência se manifesta na personificação dos seguintes elementos:
Tia Tula, Justo e Getúlio.
mormaço, clamor público, sereno.
magro, arquejante, preto.
colegas, jornalistas, presidentes.
vulto, chiru, crianças.