DEDICATÓRIA DO AUTOR
(Na verdade Clarice Lispector)
Pois que dedico esta coisa aí ao antigo Schumann e a sua doce Clara que são hoje ossos, ai de nós.
Dedico-me à cor rubra muito escarlate como o meu sangue de homem em plena idade e portanto dedico-me a
meu sangue. Dedico-me sobretudo aos gnomos, anões, sílfides e ninfas que me habitam a vida. Dedico-me à
saudade de minha antiga pobreza, quando tudo era mais sóbrio e digno e eu nunca havia comido lagosta.
[5] Dedico-me à tempestade de Beethoven. A vibração das cores neutras de Bach. A Chopin que me amolece os
ossos. A Stravinsky que me espantou e com quem voei em fogo. À―Morte e Transfiguração‖, em que Richard
Strauss me revela um destino? Sobretudo, dedico-me às vésperas de hoje e a hoje, ao transparente véu de
Debussy, a Marlos Nobre, a Prokofiev,a Carl Orff, a Schönberg, aos dodecafônicos, aos gritos rascantes dos
eletrônicos – a todos esses que em mim atingiram zonas assustadoramente inesperadas, todos esses profetas
[10] do presente e que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponto de eu neste instante explodir em: eu. Esse eu
que é vós pois não aguento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter de pé, tão tonto que sou, eu
enviesado, enfim que é que se há de fazer senão meditar para cair naquele vazio pleno que só se atinge com
a meditação. Meditar não precisa de ter resultados: a meditação pode ter como fim apenas ela mesma. Eu
medito sem palavras e sobre o nada. O que me atrapalha a vida é escrever.
[15] E – e não esquecer que a estrutura do átomo não é vista mas sabe-se dela. Sei de muita coisa que
não vi. E vós também. Não se pode dar uma prova da existência do que é mais verdadeiro, o jeito é acreditar.
Acreditar chorando.
Esta história acontece em estado de emergência e calamidade pública. Trata-se de um livro inacabado
porque lhe falta a resposta. Resposta esta que espero que alguém no mundo me dê. Vós? É uma história em
[20] tecnicolor para ter algum luxo, por Deus, que eu também preciso. Amém para nós todos.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela.Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 9-10.
A experiência da epifania, marcante na obra de Clarice Lispector, fica claramente referida no fragmento:
“Dedico-me à saudade de minha antiga pobreza, quando tudo era mais sóbrio e digno e eu nunca havia comido lagosta” (ℓ. 3-4).
“...a todos esses que em mim atingiram zonas assustadoramente inesperadas, todos esses profetas do presente e que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponto de eu neste instante explodir em: eu” (ℓ. 9-10).
“Meditar não precisa de ter resultados: a meditação pode ter como fim apenas ela mesma” (ℓ. 13).
“Esta história acontece em estado de emergência e calamidade pública” (ℓ.18).
“É uma história em tecnicolor para ter algum luxo, por Deus, que eu também preciso. Amém para nós todos” (ℓ.19-20).