Conversando com os mortos
Neste exato instante em que seus olhos passam por estas linhas, está ocorrendo um pequeno milagre da tecnologia. Não,
não estou falando do computador nem da transmissão de dados pela internet, mas da boa e velha leitura, inventada pela primeira
vez cerca de 5.500 anos atrás. Para nós, leitores experimentados, ela parece a coisa mais natural do mundo, mas isso não passa
de uma ilusão. Ler não apenas não é natural como ainda envolve cooptar uma complexa rede de processos neurológicos que
[5] surgiram para outras finalidades.
Acho que dá até para argumentar que a escrita é a mais fundamental criação da humanidade. Ela nos permitiu ampliar
nossa memória para horizontes antes inimagináveis. Não fosse por ela, jamais teríamos atingido os níveis de acúmulo,
transmissão e integração de conhecimento que logramos obter. Nosso modo de vida provavelmente não diferiria muito daquele
experimentado por nossos ancestrais do Neolítico.
[10] A conclusão é que, de alguma forma, conseguimos adaptar nosso cérebro de primatas para lidar com a escrita. Para
Stanislas Dehaene (matemático e neurocientista francês), operou aqui o fenômeno da reciclagem neuronal, pelo qual processos
que surgiram para outras funções foram recrutados para a leitura. A coisa funcionou tão bem que nos tornamos capazes de ler
com proficiência e rapidez, obtendo a façanha de absorver a linguagem através da visão, algo para o que nosso corpo e mente
não foram desenhados.
[15] Antes de continuar, é preciso qualificar um pouco melhor esse "funcionou tão bem". É claro que funcionou, tanto que me
comunico agora com você, leitor, através desse código especial. Mas, se você puxar pela memória, vai se lembrar de que teve de
aprender a ler, um processo que, na maioria esmagadora dos casos, exigiu instrução formal e vários anos de treinamento até
atingir a presente eficiência.
Enquanto a aquisição da linguagem oral ocorre, esta sim, naturalmente e sem esforço (basta jogar uma criança pequena
[20] numa comunidade linguística qualquer que ela "ganha" o idioma), a escrita/leitura precisa ser ensinada e praticada.
As dificuldades não são poucas. Começam nos olhos (só conseguimos ler o que é captado pela fóvea) e se estendem por
todo o tecido neuronal. Um problema particularmente interessante é o da invariância. Como o cérebro faz para concluir que A, a, a,
a, a são a mesma letra, apesar dos diferentes desenhos? Pior, mesmo quAnDo fazemos uma sopa de fontes e mIsturAmos
TuDo, continuamos DECIFRANDO A MENSAGEM com pouca perda de velocidade.
(Adaptado de SCHWARTSMAN, Hélio. Conversando com os mortos. Folha de S. Paulo. 14 jun. 2012.)
Compare os seguintes trechos extraídos dos textos “Conversando com os mortos” e “Sobre quem gosta de ler”:
• “Não, não estou falando do computador nem da transmissão de dados pela internet [...]”. (Schwartsman)
• “Não, quem lê não está imóvel, é puro dinamismo e motor”. (Tom Zé)
Em ambos os casos, os autores usam reiteradamente a negação para:
questionar possíveis inferências que o leitor possa fazer a partir de afirmações anteriores.
retificar afirmações feitas em trechos anteriores dos textos.
dar ênfase aos trechos, destacando sua relevância na exposição do ponto de vista dos autores.
inverter o sentido das frases, já que duas negações equivalem a uma afirmação.
responder questões formuladas pelos próprios autores ao longo dos textos.