Considere o trecho de Dom Casmurro, de Machado de Assis:
José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental às ideias; não as havendo, servia a prolongar as frases. [...]
Era nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na antiga fazenda de Itaguaí, e eu acabava de nascer. Um dia apareceu ali vendendo-se por médico homeopata; levava um Manual e uma botica. Havia então um andaço de febres; José Dias curou o feitor e uma escrava, e não quis receber nenhuma remuneração. Então meu pai propôs-lhe ficar ali vivendo, com pequeno ordenado. José Dias recusou, dizendo que era justo levar a saúde à casa de sapé do pobre.
- Quem lhe impede que vá a outras partes? Vá aonde quiser, mas fique morando conosco.
- Voltarei daqui a três meses. Voltou dali a duas semanas, aceitou casa e comida sem outro estipêndio, salvo o que quisessem dar por festas. [...]
(ASSIS, Machado de. Obra completa. vol. 1, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1992, p. 812-814)
Na figura de José Dias, o romancista propõe uma reflexão acerca da organização da sociedade brasileira do século XIX, em que o modo de produção escravista e monocultor
relegava o branco pobre a uma condição de marginalizado análoga à dos escravos, uma vez que não contribuía diretamente para a economia agrária.
explicava a maneira como alguns profissionais liberais se valiam do status de sua ocupação para tomar para si as terras de grandes latifundiários.
justificava a atribuição de tarefas de prestígio, como o exercício da medicina, a membros de famílias tradicionais, aparentados com os proprietários de terras.
reservava as profissões de alto grau técnico a uma elite abastada, que não recebia salário em troca de seus serviços, mas sim a posse de terras e escravos.
levava o homem livre e pobre a viver de favores de um senhor, com quem estabelecia um relacionamento ambíguo, de afetividade e prestação de serviços.