Considere o seguinte trecho da peça Anjo negro, de Nelson Rodrigues:
ELIAS (apaixonadamente) – Quando ele era rapaz, não bebia cachaça porque achava cachaça bebida de negro. Nunca se embriagou. E destruiu em si o desejo que sentia por mulatas e negras — ele que é tão sensual. A mim, nunca perdoou que eu fosse filho de brancos e não de negros como ele. Quando fui morar na casa de Ismael, ele já era rapaz, e eu, menino. Ismael me maltratava, me batia. Eu tinha medo dele; (olhando em torno ou, antes, virando a cabeça de um lado para outro, como se pudesse enxergar) e ainda hoje tenho — medo — um medo de animal, de bicho!
VIRGÍNIA (levantando-se e apertando a cabeça de Elias de encontro ao peito) – Eu gosto que você tenha medo, que seja assim, fino de cintura...
ELIAS – Gosta, não gosta?... mesmo depois de cego...
VIRGÍNIA (mudando de tom) – Você ficou cego como?
ELIAS (num lamento) – Foi uma fatalidade; eu estava doente dos olhos e Ismael, que me tratava, trocou os remédios. Em vez de um, pôs outro... Perdi as duas vistas... Mesmo depois de cego ele me atormentava. Estudava muito para ser mais que os brancos, quis ser médico — só por orgulho, tudo orgulho. O que ele fez com São Jorge? Tirou da parede o quadro de São Jorge, atirou pela janela — porque era santo de preto. Um dia, desapareceu de casa, depois de ter dito à mãe dele: ‘Sou negro por tua causa’. (doce, suplicante) Já ouviu o que eu disse. Agora responda — gosta dele? (silêncio) Gosta?
VIRGÍNIA (obcecada) – Ele trocou os remédios de propósito... Para cegar você!... (muda de tom) Se eu gosto dele? Não... não gosto...
ELIAS – Odeia?
VIRGÍNIA (incerta) – Odeio...
ELIAS – Tem medo dele?
VIRGÍNIA (incerta) – Medo? (mudando de tom, levanta-se, anda, enquanto Elias se desorienta, sem saber em que direção virar-se). A transpiração dele está por toda a parte, apodrecendo nas paredes, no ar, nos lençóis, na cama, nos travesseiros, até na minha pele, nos meus seios (aperta a cabeça entre as mãos). E nos meus cabelos, meu Deus!
(cheira as mãos em concha, como se quisesse encontrar nelas o cheiro três vezes maldito.)
(RODRIGUES, Nelson. Anjo negro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p. 28-30.)
A peça Anjo negro, escrita por Nelson Rodrigues em 1946, permaneceu sob interdição da censura por dois anos, até estrear em abril de 1948. Integrante do grupo das peças míticas, a ação dramática apresenta um conflito ligado ao tema do preconceito racial. No trecho citado, torna-se possível compreender a motivação de algumas cenas constitutivas da trama. Considerando isso, assinale a alternativa correta.
A cena inicial apresenta o velório do filho de Ismael e Virgínia, que morre em uma vingança perpetrada por Elias.
O envolvimento de Elias e Virgínia é motivado pelo ódio e pelo medo que ambos sentem em relação a Ismael.
O cheiro de Ismael, sentido por Virgínia, é motivador dos crimes que ela comete ao longo da peça.
Elias mente ao explicar a causa da sua cegueira, com a intenção de conquistar a cunhada.
As ações de Ismael e de Virgínia os aproximam, uma vez que ambos praticam crimes motivados pelo preconceito racial.