FUVEST 1990

"Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste.

E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever.

Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo. Às vezes as idéias não vêm, ou vêm muito numerosas – e a folha permanece meio escrita, como estava na véspera. Releio algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las. Afasto o papel.

Emoções indefiníveis me agitam – inquietação terrível, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade! Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração.

Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na escuridão.

Lá fora os sapos arengavam, o vento gemia, as árvores do pomar tornavam-se massas negras.

– Casimiro!

Casimiro Lopes estava no jardim, acocorado ao pé da janela, viajando.

– Casimiro!

A figura de Casimiro Lopes aparece à janela, os sapos gritam, o vento sacode as árvores, apenas visíveis na treva. Maria das Dores entra e vai abrir o comutador. Detenho-a: não quero luz.

O tique-taque do relógio diminui, os grilos começam a cantar. E Madalena surge no lado de lá da mesa. digo baixinho:

– Madalena!

A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos.

Também já não vejo com os olhos.

Estou encostado à mesa, as mãos cruzadas. Os objetos fundiram-se, e não enxergo sequer a toalha branca.

– Madalena...

A voz de Madalena continua a acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente que mande algum dinheiro a mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é diferente das outras, é uma irritação antiga, que me deixa inteiramente calmo. Loucura estar uma pessoa ao mesmo tempo zangada e tranqüila. Mas estou assim. Irritado contra quem? Contra mestre Caetano. Não obstante ele ter morrido, acho bom que vá trabalhar. Mandrião!

A toalha reaparece, mas não sei se é esta toalha sobre que tenho as mãos cruzadas ou a que estava aqui há cinco anos.

rumor do vento, dos sapos, dos grilos. A porta do escritório abre-se de manso, os passos de seu Ribeiro afastam-se. Uma coruja pia na torre da igreja. Terá realmente piado a coruja? Será a mesma que piava há dois anos? Talvez seja até o mesmo pio daquele tempo.

Agora seu Ribeiro está conversando com D. Glória no salão. Esqueço que eles me deixaram e que esta casa está quase deserta.

– Casimiro!

Penso que chamei Casimiro Lopes. A cabeça dele, com o chapéu-de-couro de sertanejo, assoma de quando em quando à janela, mas ignora se a visão que me dá é atual ou remota.

Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me, bato na mesa e tenho vontade de chorar.

Aparentemente estou sossegado: as mãos continuam cruzadas sobre a toalha e os dedos parecem de pedra. Entretanto ameaço Madalena com o punho. Esquisito.

Distingo no ramerrão da fazenda as mais insignificantes minudências. Maria das Dores, na cozinha, dá lições ao papagaio. Tubarão rosna acolá no jardim. O gado muge no estábulo.

O salão fica longe: para irmos lá temos de atravessar um corredor comprido. apesar disso a palestra de seu Ribeiro e D. Glória é bastante clara. A dificuldade seria reproduzir o que eles dizem. É preciso admitir que estão conversando sem palavras.

Padilha assobia no alpendre. Onde andará Padilha?

Se eu convencesse Madalena de que ela não tem razão... Se lhe explicasse que é necessário vivermos em paz... Não me entende. Não nos entendemos. O que vai acontecer será muito diferente do que esperamos. Absurdo.

Há um grande silêncio. Estamos em julho. O nordeste não sopra e os sapos dormem. Quanto às corujas, marciano subiu ao forro da igreja e acabou com elas a pau. E foram tapados os buracos de grilos.

Repito que tudo isso continua a azucrinar-me.

O que não percebo é o tique-taque do relógio. Que horas são? Não posso ver o mostrador assim às escuras. Quando me sentei aqui, ouviam-se as pancadas do pêndulo, ouviam-se muito bem. Seria conveniente dar corda ao relógio, mas não consigo mexer-me."

(Graciliano Ramos, São Bernardo, Rio de Janeiro: Record. 1989).

"Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me: bato na mesa e tenho vontade de chorar."

Momento central do texto em questão, ajuda a compreender a personalidade e Paulo Honório, personagem-narrador do romance. Podemos dizer que se trata de:
a
personagem fraca, abatida pelas circunstâncias.
b
personalidade rica de humanidade, que se perturba diante da adversidade.
c
personalidade complexa, perturbada diante dos acontecimentos.
d
homem forte, revoltado contra tudo e contra todos.
e
homem sentimental e lírico, incapaz de conciliar os próprios sentimentos.
Ver resposta
Ver resposta
Resposta
C
Resolução
Assine a AIO para ter acesso a esta e muitas outras resoluções
Mais de 300.000 questões com resoluções e dados exclusivos disponíveis para alunos AIO.
E mais: nota TRI a todo o momento.
Saiba mais
Esta resolução não é pública. Assine a aio para ter acesso a essa resolução e muito mais: Tenha acesso a simulados reduzidos, mais de 200.000 questões, orientação personalizada, video aulas, correção de redações e uma equipe sempre disposta a te ajudar. Tudo isso com acompanhamento TRI em tempo real.
Dicas
expand_more
expand_less
Dicas sobre como resolver essa questão
Erros Comuns
expand_more
expand_less
Alguns erros comuns que estudantes podem cometer ao resolver esta questão
Conceitos chave
Conceitos chave sobre essa questão, que pode te ajudar a resolver questões similares
Estratégia de resolução
Uma estratégia sobre a forma apropriada de se chegar a resposta correta
Transforme seus estudos com a AIO!
Estudantes como você estão acelerando suas aprovações usando nossa plataforma de IA + aprendizado ativo.
+25 pts
Aumento médio TRI
4x
Simulados mais rápidos
+50 mil
Estudantes
Mariana Scheffel
AIO foi fundamental para a evolução do meu número de acertos e notas, tanto no ENEM quanto em outros vestibulares, fornecendo os recursos e as ferramentas necessárias para estudar de forma eficaz e melhorar minhas notas.
Joice Neves
Faltavam 3 meses para o ENEM, eu estava desesperada e mentalmente fragilizada por não ver os resultados do meu esforço. Então, eu encontrei a AIO e, em 3 meses, eu consegui aumentar a minha nota média em 50 pontos. Meses depois, fui aprovada no curso que eu tanto desejei. Esse sonho se tornou real graças à AIO.
Sarah
Neste ano da minha aprovação, a AIO foi a forma perfeita de eu entender meus pontos fortes e fracos, melhorar minha estratégia de prova e, alcançar uma nota excepcional que me permitiu realizar meu objetivo na universidade dos meus sonhos. Só tenho a agradecer à AIO ... pois com certeza não conseguiria sozinha.
A AIO utiliza cookies para garantir uma melhor experiência. Ver política de privacidade
Aceitar