Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: deciframe ou devoro-te.
Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: — amor da glória.
Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição.
Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto.
Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Globo, 1997, p. 3-4.
A partir da leitura do texto acima, assinale a opção correta, considerando as características do Realismo no Brasil.
A análise crítica da sociedade da época, em destaque no texto, é marcada por acentuada idealização.
O diálogo com o leitor, característico dos textos machadianos, presta-se, nesse texto, a indicar o modo como o leitor deve ler o parágrafo imediatamente anterior e fornece orientações específicas a respeito da mudança na situação narrada.
A invenção do emplasto denota o cientificismo de Machado de Assis, que constrói personagens tipificados.
Machado de Assis, ao contrapor, com ironia, as opiniões do cônego e do militar, revela a crítica à ideia de “amor à glória” do defunto-autor.
A incógnita mencionada no primeiro parágrafo refere-se ao problema encontrado na fórmula para a composição do emplasto.