EFOMM 2014

Com base no texto, responda à questão.

 

UM CINTURÃO

 

Graciliano Ramos

 

    As minhas primeiras relações com a
justiça foram dolorosas e deixaram-me funda
impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por
aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me
[5] haviam feito representar esse papel, mas ninguém
me dera a entender que se tratava de julgamento.
Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era
natural.
    Os golpes que recebi antes do caso do
[10] cinturão, puramente físicos, desapareciam quando
findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me
com uma corda nodosa que me pintou as costas de
manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça
com dificuldade, eu distinguia nas costelas
[15] grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me,
enrolaram-me em panos molhados com água de
sal – e houve uma discussão na família. Minha
avó, que nos visitava, condenou o procedimento
da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa,
[20] sem querer. Não guardei ódio a minha mãe: o
culpado era o nó. Se não fosse ele, a flagelação
me haveria causado menor estrago. E estaria
esquecida. A história do cinturão, que veio pouco
depois, avivou-a.
[25]    Meu pai dormia na rede, armada na sala
enorme. Tudo é nebuloso. Paredes
extraordinariamente afastadas, rede infinita, os
armadores longe, e meu pai acordando,
levantando-se de mau humor, batendo com os
[30] chinelos no chão, a cara enferrujada.
Naturalmente não me lembro da ferrugem, das
rugas, da voz áspera, do tempo que ele consumiu
rosnando uma exigência. Sei que estava bastante
zangado, e isto me trouxe a covardia habitual.
[35] Desejei vê-lo dirigir-se a minha mãe e a José Baía,
pessoas grandes, que não levavam pancada. Tentei
ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A
força de meu pai encontraria resistência e gastarse-ia em palavras.
[40]    Débil e ignorante, incapaz de conversa ou
defesa, fui encolher-me num canto, para lá dos
caixões verdes. Se o pavor não me segurasse,
tentaria escapulir-me: pela porta da frente
chegaria ao açude, pela do corredor acharia o pé
[45] de turco. Devo ter pensado nisso, imóvel, atrás
dos caixões. Só queria que minha mãe, sinhá
Leopoldina, Amaro e José Baía surgissem de
repente, me livrassem daquele perigo.

    Ninguém veio, meu pai me descobriu
[50] acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e
arrancou-me dali violentamente, reclamando um
cinturão. Onde estava o cinturão? Eu não sabia,
mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me,
gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo
[55] da raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me;
os sons duros morriam, desprovidos de
significação.
    Não consigo reproduzir toda a cena.
Juntando vagas lembranças dela a fatos que se
[60] deram depois, imagino os berros de meu pai, a
zanga terrível, a minha tremura infeliz.
Provavelmente fui sacudido. O assombro gelavame o sangue, escancarava-me os olhos.
    Onde estava o cinturão? Impossível
[65] responder. Ainda que tivesse escondido o infame
objeto, emudeceria, tão apavorado me achava.
Situações deste gênero constituíram as maiores
torturas da minha infância, e as consequências
delas me acompanharam.
[70]    O homem não me perguntava se eu tinha
guardado a miserável correia: ordenava que a
entregasse imediatamente. Os seus gritos me
entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou
de semelhante maneira.
[75]    Onde estava o cinturão? Hoje não posso
ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me
forte, desanima, como se fosse parar, a voz
emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita
coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação
[80] de que me furam os tímpanos com pontas de ferro.
    Onde estava o cinturão? A pergunta
repisada ficou-me na lembrança: parece que foi
pregada a martelo.
    A fúria louca ia aumentar, causar-me sério
[85] desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado,
encolhido, movendo os dedos frios, os beiços
trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um
cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se
transferissem. O moleque e os cachorros eram
[90] inocentes, mas não se tratava disto.
Responsabilizando qualquer deles, meu pai me
esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na
beira do açude ou no quintal. Minha mãe, José
Baía, Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os
[95] cachorros da fazenda abandonaram-me. Aperto na
garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento,
voando, abelhas de todos os cortiços enchendo-me
os ouvidos – e, nesse zunzum, a pergunta
medonha. Náusea, sono. Onde estava o cinturão?
[100] Dormir muito, atrás de caixões, livre do martírio.
    Havia uma neblina, e não percebi direito
os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se
do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda
prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a

[105] folha de couro fustigou-me as costas. Uivos,
alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que
gogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum
socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-

diabo.
[110]    Achava-me num deserto. A casa escura,
triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse
ermo, recordo-me de cemitérios e de ruínas ma-

assombradas. Cerravam-se as portas e as janelas,
do teto negro pendiam teias de aranha. Nos
[115] quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava,
começava a aprendizagem dolorosa.
    Junto de mim, um homem furioso,
segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as
vergastadas não fossem muito fortes: comparadas
[120] ao que senti depois, quando me ensinaram a carta
de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro,
os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como
carrapeta eram menos um sinal de dor que a
explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir,
[125] quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões,
movia-me num desespero.
    O suplício durou bastante, mas, por muito
prolongado que tenha sido, não igualava a
mortificação da fase preparatória: o olho duro a
[130] magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz
rouca a mastigar uma interrogação
incompreensível.
    Solto, fui enroscar-me perto dos caixões,
coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer
[135] baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes de
adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede,
afastar as varandas, sentar-se e logo se levantar,
agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a
que desprendera a fivela quando se deitara.
[140] Resmungou e entrou a passear agitado. Tive a
impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça, a
cara enrugada serenou, os olhos esmoreceram,
procuraram o refúgio onde me abatia, aniquilado.
    Pareceu-me que a figura imponente
[145] minguava – e a minha desgraça diminuiu. Se meu
pai se tivesse chegado a mim, eu o teria recebido
sem o arrepio que a presença dele sempre me deu.
Não se aproximou: conservou-se longe, rondando,
inquieto. Depois se afastou.
[150]    Sozinho, vi-o de novo cruel e forte,
soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo,
insignificante, tão insignificante e miúdo como as
aranhas que trabalhavam na telha negra.
 Foi esse o primeiro contato que tive com a
[155] justiça.

Assinale a opção em que o adjetivo sublinhado cumpre função sintática diferente dos demais.

a

Irritada, ferira-me à toa, sem querer.

b

Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil.

c

Devo ter pensado nisso, imóvel, atrás dos caixões.

d

Ninguém veio, meu pai me descobriu acocorado e sem fôlego, colado ao muro (...).

e

Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as pisaduras (...).

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B
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