Ciência e Hollywood
Infelizmente, é verdade: explosões não fazem barulho algum no espaço. Não me lembro de um
só filme que tenha retratado isso direito. Pode ser que existam alguns, mas se existirem não
fizeram muito sucesso. Sempre vemos explosões gigantescas, estrondos fantásticos. Para existir
ruído é necessário um meio material que transporte as perturbações que chamamos de ondas
[5] sonoras. Na ausência de atmosfera, ou água, ou outro meio, as perturbações não têm onde se
propagar. Para um produtor de cinema, a questão não passa pela ciência. Pelo menos não como
prioridade. Seu interesse é tornar o filme emocionante, e explosões têm justamente este papel;
roubar o som de uma grande espaçonave explodindo torna a cena bem sem graça.
Recentemente, o debate sobre as liberdades científicas tomadas pelo cinema tem aquecido. O
[10] sucesso do filme O dia depois de amanhã (The day after tomorrow), faturando mais de meio bilhão
de dólares, e seu cenário de uma idade do gelo ocorrendo em uma semana, em vez de décadas
ou, melhor ainda, centenas de anos, levantaram as sobrancelhas de cientistas mais rígidos que
veem as distorções com desdém e esbugalharam os olhos dos espectadores (a maioria) que
pouco ligam se a ciência está certa ou errada. Afinal, cinema é diversão.
[15] Até recentemente, defendia a posição mais rígida, que filmes devem tentar ao máximo ser fiéis à
ciência que retratam. Claro, isso sempre é bom. Mas não acredito mais que seja absolutamente
necessário. Existe uma diferença crucial entre um filme comercial e um documentário científico.
Óbvio, documentários devem retratar fielmente a ciência, educando e divertindo a população,
mas filmes não têm necessariamente um compromisso pedagógico. As pessoas não vão ao
[20] cinema para serem educadas, ao menos como via de regra.
Claro, filmes históricos ou mesmo aqueles fiéis à ciência têm enorme valor cultural. Outros
educam as emoções através da ficção. Mas, se existirem exageros, eles não deverão ser
criticados como tal. Fantasmas não existem, mas filmes de terror sim. Pode-se argumentar que,
no caso de filmes que versam sobre temas científicos, as pessoas vão ao cinema esperando uma
[25] ciência crível. Isso pode ser verdade, mas elas não deveriam basear suas conclusões no que diz
o filme. No mínimo, o cinema pode servir como mecanismo de alerta para questões científicas
importantes: o aquecimento global, a inteligência artificial, a engenharia genética, as guerras
nucleares, os riscos espaciais como cometas ou asteroides etc. Mas o conteúdo não deve ser
levado ao pé da letra. A arte distorce para persuadir. E o cinema moderno, com efeitos especiais
[30] absolutamente espetaculares, distorce com enorme facilidade e poder de persuasão.
O que os cientistas podem fazer, e isso está virando moda nas universidades norte-americanas,
é usar filmes nas salas de aula para educar seus alunos sobre o que é cientificamente correto
e o que é absurdo. Ou seja, usar o cinema como ferramenta pedagógica. Os alunos certamente
prestarão muita atenção, muito mais do que em uma aula convencional. Com isso, será possível
[35] educar a população para que, no futuro, um número cada vez maior de pessoas possa discernir
o real do imaginário.
MARCELO GLEISER Adaptado de www1.folha.uol.com.br.
A oposição entre “ciência” e “Hollywood”, expressa no título do artigo de Gleiser, corresponde a outra oposição bastante estudada no campo da literatura, que se verifica entre:
acontecimento e opinião
historicismo e atualidade
verdade e verossimilhança
particularização e universalismo