BOCAGE NO FUTEBOL
Quando eu tinha meus cinco, meus seis anos, morava, ao lado de minha casa, um garoto que era
tido e havido como o anticristo da rua. Sua idade regulava com a minha. E justiça se lhe faça: — não havia
palavrão que ele não praticasse. Eu, na minha candura pânica, vivia cercado de conselhos, por todos os
lados: — “Não brinca com Fulano, que ele diz nome feio!”. E o Fulano assumia, aos meus olhos, as
[5] proporções feéricas de um Drácula, de um Nero de fita de cinema.
Mas o tempo passou. E acabei descobrindo que, afinal de contas, o anjo de boca suja estava com a
razão. Sim, amigos: — cada nome feio que a vida extrai de nós é um estímulo vital irresistível. Por exemplo:
— os nautas camonianos. Sem uma sólida, potente e jucunda pornografia, um Vasco da Gama, um
Colombo, um Pedro Álvares Cabral não teriam sido almirantes nem de barca da Cantareira. O que os
[10] virilizava era o bom, o cálido, o inefável palavrão.
Mas, se nas relações humanas em geral, o nome feio produz esse impacto criador e libertário, que
dizer do futebol? Eis a verdade: — retire-se a pornografia do futebol e nenhum jogo será possível. Como
jogar ou como torcer se não podemos xingar ninguém? O craque ou o torcedor é um Bocage. Não o Bocage
fidedigno, que nunca existiu. Para mim, o verdadeiro Bocage é o falso, isto é, o Bocage de anedota. Pois
[15] bem: — está para nascer um jogador ou um torcedor que não seja bocagiano. O craque brasileiro não sabe
ganhar partidas sem o incentivo constante dos rijos e imortais palavrões da língua. Nós, de longe, vemos os
22 homens correndo em campo, matando-se, agonizando, rilhando os dentes. Parecem dopados e
realmente o estão: — o chamado nome feio é o seu excitante eficaz, o seu afrodisíaco insuperável.
Nélson Rodrigues, À sombra das chuteiras imortais. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.
Considere os seguintes elementos de composição textual:
I interação com o leitor;
II incorporação de uma fala em discurso indireto;
III procedimento intertextual;
IV mistura de gêneros discursivos.
É correto afirmar que, no texto, ocorre apenas o que foi indicado em
I e IV.
II e IV.
I, III e IV.
II e III.
I, II, e III.