Era uma vez no Quénia
Jomo Kényatta é considerado o pai da Uhuru, ou independência do Quênia,
que ocorreu em 12 de dezembro de 1963. Antes disso, o Quênia era uma colônia do
Império Britânico. Em 1952, quando o colonialismo começava a ruir, Kenyatta foi
acusado é sentenciado em um julgamento de fachada que o enviou ao cárcere.
5Acusação? Era considerado o líder dos guerrilheiros Mau Mau, ainda que não
houvesse provas.
Os Mau Mau foram um movimento formado por diversos grupos guerrilheiros
que lutaram entre 19S2 e 1960 contra os britânicos e quenianos leais ao governo
colonial. O objetivo dos Mau Mau era conquistar terra, liberdade e expulsar os
10 colonizadores. Apesar de derrotados militarmente, os Mau Mau foram responsáveis
pela ruína moral do projeto colonial no Quênia. Nenhum império europeu conseguiria
barrar o sol da independência para os quenianos.
Os campos de concentração ingleses conseguiram impor oito anos de terror,
mas não impediram que a colônia, outrora chamada de um país de homens brancos,
15 erguesse suas próprias cores na bandeira queniana. Vítimas de um sistema colonial,
racista, autocrático é exploratório, Kenyatta e seus aliados conseguiram organizar os
maiores movimentos quenianos pela independência da nação e, após décadas,
conquistaram a libertação.
Frantz Fanon, influente intelectual afro-caribenho, partidário da
20 descolonização por via das armas, não aprovaria o método de Kenyatta. O pai da
Uhuru tratou de negociar com o antigo colonizador. Kenyatta nunca reconheceu o
valor dos que lutaram é morreram no movimento Mau Mau. O pai da independência
não distribuiu a terra tão esperada pelos Mau Mau, mas dividiu entre seus aliados. A
independência também proibiu o assunto. Falar e lembrar a luta Mau Mau podia
25 render problemas com um governo que queria abafar o passado.
Cerca de 10 mil Mau Mau morreram por terra é liberdade. Milhares de
apoiadores e suspeitos sofreram em campos de concentração ingleses. Nem uma
década havia passado desde os campos de concentrações nazistas da Segunda Guerra
Mundial serem desativados e, na década de 1950, os britânicos, com a justificativa da
30 missão civilizadora, ergueram campos de morte e tortura por toda a colônia do
Quénia.
Ao fim, com lágrimas e sofrimento, mas com esperança e resistência, o
colonialismo caiu. Porém, sua obra persistiu (é persiste). A liberdade na África raiou
com celebração e acabou em sistemas de partidos únicos que proibiam oposições é
35 barravam processos democráticos. O pai da independência, Jomo Kenyatta, tornou-
se o líder incontestável da República do Quênia. Mas o patriarca do Quênia havia
aprendido o método colonial.
Em 1977, um premiado autor queniano chamado Ngügi wa Thiong'o e um
autor com nacionalidade queniana e zimbabuana Ngugi wa Mirii produziram uma
40 peça de teatro com a participação da população da pequena cidade de Kamiriithu,
localizada nos arredores da capital Nairóbi. Após um grande sucesso a peça foi
proibida pelo governo queniano. Motivo? Ela criticava o governo, denunciava-O como
uma continuação do governo colonial, clamava por terra, liberdade e buscava resgatar
e inspirar o público através do exemplo da luta Mau Mau.
45 A peça se chamava I Will Morry When I Wont (Eu vou me casar quando eu
quiser . Os autores afirmavam que o governo não cumpria seus deveres com o novo.
Nada de democracia, nada de terras e nada de dividir a riqueza .. Ngügi wa Thiong'o foi
preso em sua casa. Não houve acusação nem Julgamento. O acesso à terra e a
liberdade que não existiam nos tempos de colônia também não floresceram no pós-
50 colônia. Mas Isso não podia ser dito.
Aprisionado com outros presos políticos do Quênia independente, Thiong'o
teve que tirar suas próprias conclusões sobre a prisão. Seus algozes não emitiam
nenhuma declaração sobre o motivo de seu encarceramento. Kenyatta desafiara um
poder autocrático e fora aprisionado. Thiong'o desafiara um poder autocrático e fora
55 aprisionado. Um caso de colonialismo e um caso de neocolonialismo,
respectivamente.
Kenyatta não ousou acabar com a obra do colonialismo, mas decidiu exercê-
la. Os brancos que foram embora deixaram suas formas de governança e os que
assumiram decidiram mantê-las. Na prisão, Thiong'o escreveu um livro chamado Devil
60 on the Cross (Diabo na Cru,) om rolos do papel higiênico. Em uma cena da obra. o
autor narra como homens negros do Quênia aprenderam os truques dos antigos
mestres brancos. Estes ensinavam como praticar a dominação autocrática sobre seus
países, não apenas para seu beneficio, mas também para benefício da antiga
metrópole.
65 Mas, se a autocritica elite queniana (e africana) trabalha para si e para os
antigos mestres colonialistas. para quem trabalham os mestres brancos? O autor nos
Informa que todos servem ao maior dominador de todos, o shiema capitalista
imposto pela Europa ao redor do mundo. E, com o apoio de grupos nativos que
desejavam emular o antigo colonizador, ele se mantém em terras além da Europa.
70 Agora, imagine. isso ocorreu na África, Ásia. Oceania e América. Formas de
organizar a sociedade e suas lr,stltulç6es de controle foram desenvolvidas na Europa
e impostas sobre outros continentes para benefício do pequeno continente. Desse
modo, a Eu1opa deu a si mesma o lugar de centro do mundo através de séculos de
escravidão., colonialismo, imperialismo e racismo.
75 Desafiar o dinheiro e seus lacaios rende prisão, censura, exílio e, nos casos
mais extremos, assassinatos. O caso de Jomo Kcnyattct, um aspirante de libertação do
Quênia, não significou a libertação do trabalhador e aldeões do país. Como um
clássico exemplo de capitalismo de terceiro mundo, apenas uma pequena fração dá
sociedade ganhou enquanto a maioria existe com o que sobra. Romper com a obra do
80 colonialismo não foi o caminho escolhido pelos que tomaram o poder na R(!,pública
do Quênia.
Uma população mal tratada num país desigual acabou por ser o foco de muitas
das obras de Ngügï wa Thiong'o. O autor não fora preso apenas por Jomo Kenyaua e
seu sucessor Daniel arap Moi. mas pelo sistema neocolonial que domina a cultura. a
85 economia e a política queniana pós-independência. Kenyatta e Thiong'o são dois
exemplos de uma longa conjuntura histórica. Não se trata de repetição, existe em
particularidades nos dois diferentes momentos históricos de cada um dos
personagens.
Kenyatta buscou descolonizar o Quénia, mas sua descolonização era limitada.
90 Não previa descolonizar-se das formas econômicas, culturais políticas impostaas pelo
Ocidente. Thiong'o buscou ir além. O autor queria descolonizar corações,, mentes e
desfazer os nós que prendem o "lndependente" Quênia ao antigo colonizador. O
neocolonialismo. como termo, saiu de moda:, mas como sistema de dominação do
centro sobre a periferia, ele está em pleno vapor moldando as relações internacionais e
95 dando forma à globalização
o caso da guerrilha Mau Mau e de Ngügï wa Thlong'o servem para
exemplificar uma luta do longa data entre forças progressista que, por um lado,
resiste aos ímpetos colonizadores que gestam desigualdade e de outro forças que
até hoje elevam o passado colonial e sua obra para legitimar o domínio do poder
100 ocidental responsável por um sistema que deixa o planeta à beira da destruição.
Apesar de pouco conhecida nos trópicos latinos, a história queniana é um espelho
para os colonizados do globo que ainda esperam por sair da noite.
{Bruno Ribeiro Oliiveira. Le Monde Oip/omatique. 3 de setembro de 2020.)
Assinale a alternativa em que a palavra tenha sido composta por derivação prefixal.
descolonizar (linha 89)
encarceramento (linha 53)
neocolonial (linha 84)
exploratório (linha 16)
autocrático (linha 16)