Texto 2
Línguas que não sabemos que sabíamos
Mia Couto
Num conto que nunca cheguei a publicar
acontece o seguinte: uma mulher, em fase
terminal de doença, pede ao marido que lhe conte
uma história para apaziguar as insuportáveis
5 dores. Mal ele inicia a narração, ela o faz parar:
̶ Não, assim não. Eu quero que me fale
numa língua desconhecida.
̶ Desconhecida? – pergunta ele.
̶ Uma língua que não exista. Que eu preciso
10 tanto de não compreender nada!
O marido se interroga: como se pode saber
falar uma língua que não existe? Começa por
balbuciar umas palavras estranhas e sente-se
ridículo como se a si mesmo desse provas da
15 incapacidade de ser humano. Aos poucos, porém,
vai ganhando mais à-vontade nesse idioma sem
regra. E ele já não sabe se fala, se canta, se reza.
Quando se detém, repara que a mulher está
adormecida, e mora em seu rosto o mais tranquilo
20 sorriso. Mais tarde, ela lhe confessa: aqueles
murmúrios lhe trouxeram lembranças de antes de
ter memória. E lhe deram o conforto desse mesmo
sono que nos liga ao que havia antes de estarmos
juntos.
25 ____ Na nossa infância, todos nós
experimentamos este primeiro idioma, o idioma do
caos, todos nós usufruímos do momento divino em
que a nossa vida podia ser todas as vidas e o
mundo ainda esperava por um destino. James
30 Joyce chamava de “caosmologia” a esta relação
com o mundo informe e caótico. Essa relação,
meus amigos, é aquilo que faz mover a escrita,
qualquer que seja o continente, qualquer que seja
a nação, a língua ou o género literário.
35 ____ Eu creio que todos nós, poetas e
ficcionistas, não deixamos nunca de perseguir
esse caos seminal. Todos nós aspiramos
regressar a essa condição em que estivemos tão
fora de um idioma que todas as línguas eram
40 nossas. Dito de outro modo, todos nós somos
impossíveis tradutores de sonhos. Na verdade, os
sonhos falam em nós o que nenhuma palavra
sabe dizer.
O nosso fito, como produtores de sonhos,
45 é aceder a essa outra língua que não é falável,
essa língua cega em que todas as coisas podem
ter todos os nomes. O que a mulher doente pedia
é aquilo que todos nós queremos: anular o tempo
e fazer adormecer a morte.
COUTO, Mia. E se Obama fosse africano?: e outras intervenções. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. pp.11-12. Adaptado.
As palavras sublinhadas em Que eu preciso tanto de não compreender nada! (Linhas 9-10), morfologicamente, devem ser classificadas
ambas como pronomes indefinidos
ambas como advérbios
ambas como adjetivos
como advérbio e pronome indefinido, respectivamente
como adjetivo e advérbio, respectivamente