UNIPE 2016/1

  Antigamente a simples presença do médico irradiava
vida. Antigamente os médicos eram também feiticeiros.
“Mestre, diga uma única palavra, e minha filha será
curada...”. A vida circulava nas relações de afeto que
[5] ligavam o médico àqueles que o cercavam. Naquele
tempo os médicos sabiam dessas coisas. Hoje não
sabem mais.
  Aquele médico ao lado da menina: não se parece
ele com um cavaleiro solitário que vai sozinho lutar contra
[10] a morte? Naquele tempo os médicos sabiam qual era
seu destino. Havia muito sofrimento, sim.
  Havia muito medo, sim. Medo e sofrimento são
parte da substância da vida. Mas nunca soube de um
médico que ficasse estressado. Não são as batalhas
[15] que produzem o estresse. As batalhas, ao contrário, dão
coesão, pureza, integração ao corpo e à alma. O
cavaleiro solitário é um herói com o corpo coberto de
cicatrizes, mas de alma inteira. Os estressados são
aqueles que, sem ter uma batalha a travar, são puxados
[20] em todas as direções por uma legião de demônios.
  A imagem do cavaleiro solitário que luta contra a
morte é uma imagem romântica. Bela. Comovente. Quem
não desejaria ser um? Criticam o romantismo. Fernando
Pessoa comenta: mas não é verdade que a alma é
[25] incuravelmente romântica? O médico de antigamente era
um herói romântico, vestido de branco. As jovens
donzelas e as mulheres casadas suspiravam ao vê-lo
passar. Ainda bem que a consulta permitia o gozo puro
do toque da sua mão...
[30]   O cavaleiro solitário que luta contra a morte é um
santo. Quem, jamais, ousaria pensar qualquer coisa de
mau contra o médico? Hoje são comuns os processos
contra os médicos por imperícia. Ser médico
transformou-se num risco. Porque ninguém mais acredita
[35] na sua santidade. Talvez porque eles tenham deixado
mesmo de ser santos... Mas, naquele tempo, as
pessoas julgavam que o médico era um santo, e porque
as pessoas pensavam assim, eles eram santos.
  Eu me apaixonei pela imagem. Queria ser feiticeiro.
[40] Queria ser o cavaleiro solitário que luta contra a morte.
Queria ser o santo. E esse ideal, para mim, não
era uma abstração. Ele tinha um nome: Albert
Schweitzer — um dos homens mais geniais do século
XX. Organista, escritor, teólogo, fez um trato com Deus:
[45] até os 30 anos, faria essas coisas que lhe davam prazer
cultural. Depois, iria se dedicar inteiramente aos
sofredores. Entrou para a escola de medicina aos 30 e,
depois de médico, passou o resto da vida num lugar
perdido das selvas africanas, construiu um hospital de
[50] madeira e sapé onde distribuía alívio da dor. Claro, nunca
ficou rico. Nem teve estresse. Sua bela imagem o fazia
feliz. Ganhou o prêmio Nobel da Paz.

  Não fui médico. Mas segui pela vida encantado por
aquele quadro. O encanto foi quebrado quando fui fazer
[55] meu doutoramento nos Estados Unidos. Um dia fui ouvir
uma palestra do diretor do hospital da cidade de Princeton,
NJ, onde eu estudava. Ele começou sua preleção com
esta afirmação que estilhaçou o quadro: “O hospital de
Princeton é uma empresa que vende serviços”. “Meu
[60] Deus”, eu pensei. “Aquele médico não existe mais”.
  E percebi que, agora, os médicos se encontram
lado a lado com os prestadores de serviço, os
encanadores, os eletricistas, os vendedores de seguro,
os agentes funerários, os motoristas de táxi. É só
[65] procurar na lista de classificados. A presença mágica já
não existe. O médico é um profissional como os outros.
Perdeu sua aura sagrada. E me veio, então, uma
definição do médico compatível com a definição que o
diretor dera para o hospital de Princeton: “um médico é
[70] uma unidade biopsicológica móvel, portadora de
conhecimentos especializados, e que vende serviços”.
  Essa imagem, em absoluta conformidade com as
condições sociais e econômicas do mundo moderno,
não fez nada comigo. Não me comoveu. Não desejei ser
[75] igual. O mito de Narciso, eu acho, é o mito mais profundo.
Todos nós, como Narciso, estamos em busca da nossa
bela imagem. Mas para ver a nossa bela imagem temos
necessidade de espelhos. Espelhos são os outros. É
no rosto dos outros que vemos a nossa própria imagem
[80] refletida. Nos tempos antigos todas as pessoas eram
espelhos para o médico. Todos o conheciam. Todos
olhavam para ele com admiração. Hoje, morto o médico
do quadro, o médico é agora procurado não por ser
amado e conhecido, mas por constar no catálogo do
[85] convênio.
  Seus espelhos não são mais os clientes, parentes,
todo mundo. São os seus pares: colegas de empresa,
sócios de consultório, congressos. Perigosas, essas
relações entre pares. O primeiro assassinato registrado
[90] foi de um irmão que matou o irmão. A relação do médico
antigo com seus espelhos era uma relação de gratidão
e admiração. A relação do médico de hoje com seus
espelhos é uma relação de inveja e competição. Acho
que os médicos, hoje, são infelizes por causa disto: eles
[95] resolveram ser médicos por desejar ser belos como o
cavaleiro solitário, puros como o santo, e admirados
como o feiticeiro. Era isso que estava dentro deles, ao
tomarem a decisão de estudar medicina. E é isso que
continua a viver na sua alma, como saudade...
[100]   É. A vida lhes pregou uma peça. E hoje a imagem
que eles veem, refletida no espelho, é a de uma unidade
biopsicológica móvel, portadora de conhecimentos
especializados, e que vende serviços... Os médicos
sofrem por saudade de uma imagem que não existe mais.

ALVES, Rubens. Disponível em: http://www2.fm.usp.br/tutores/bom/ bompt87.php. Acesso em: 12 out. 2015.

A técnica argumentativa de que se apropriou o autor para defender sua tese e despertar no leitor uma reflexão foi a

a

comparação entre realidades espaciais e temporais distintas. 

b

dissertação sobre modelos de comportamentos de épocas distintas e espaços idênticos. 

c

descrição pormenorizada de épocas distintas, revelando suas proximidades e diferenças. 

d

enumeração de fatos que comprovam que suas informações são pertinentes ao tema. 

e

narração de acontecimentos em diferentes épocas da história da medicina.

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