Alguns estudiosos afirmam que a língua portuguesa é machista e apresentam pelo menos duas razões para
isso: se numa sala há uma multidão de mulheres e apenas um homem, a concordância se fará no masculino plural;
se uma pessoa quer agredir um homem, é a mãe dele que ela xinga; além disso, há nomes que são elogios para o
homem e agressões à mulher: a um homem se pode chamar touro ou garanhão, mas chamar a mulher de vaca ou de
[5] égua é ofendê-la.
À primeira vista esses argumentos parecem ter fundamento. Engano.
A língua se caracteriza pelos instrumentos gramaticais, como flexões nominais e verbais, artigos, preposições
e conjunções, por exemplo. O vocabulário, isto é, as palavras reais, não caracterizam a língua. É por isso que o
inglês é considerado língua germânica e não latina, apesar de ter uma quantidade significativa de palavras latinas no
[10] seu léxico. Da mesma forma, o romeno é considerado língua latina, apesar da grande quantidade de palavras eslavas
em seu dicionário.
É basicamente o vocabulário o que distingue o português do Brasil do português de Portugal, ou o português
brasileiro do morro do português brasileiro do asfalto. Ninguém deixaria de reconhecer como legitimamente portuguesa
uma frase como “O Office-boy, com uma pizza de mozarela, flertou com as garçonetes no hall do drive-in”, em que
[15] não existe uma única palavra portuguesa (Office-boy, hall e drive-in são palavras inglesas, como a raiz de flertou;
pizza e mozarela são nomes italianos; garçonete é nome francês). O que caracteriza a frase como portuguesa são
os instrumentos gramaticais: os artigos, as preposições, a flexão verbal, o número, o gênero.
Um falante pode inventar um substantivo novo ou um verbo novo, mas não poderá inventar um gênero diferente
nem uma conjunção diferente, porque é a gramática que faz a língua e não o dicionário. Para inventar palavras, não
[20] é necessário utilizar os recursos de formação vocabular que a língua põe à disposição dos falantes, como sufixos e
prefixos. Basta respeitar os padrões fonológicos da língua.
Ao inventar o imexível, o então ministro do Trabalho do governo Collor, Rogério Magri, usou recursos
existentes na língua, e o resultado foi perfeitamente compreensível, aceitável e de acordo com outras formações
lexicais já existentes, como ilegível, por exemplo. Mas, ao inventar hiputrélico, em Tutaméia, Guimarães Rosa só
[25] respeitou os padrões silábicos e fonológicos da língua, o que deu uma configuração portuguesa à palavra, mas
nenhum sentido, uma vez que nenhum falante poderá saber o que essa palavra significa, a menos que o próprio autor
o diga.
Quando usa um termo agressivo para a mulher, mas elogiativo para o homem, o falante é que está sendo
machista, e não a língua, porque a escolha das palavras é exclusivamente responsabilidade sua. Mas, quando usa
[30] o feminino, o plural, ou conjuga um verbo, a responsabilidade é da língua, porque é a língua e não o falante que
determina o gênero ou a flexão verbal. Assim, Deus é masculino não porque a língua é machista, mas porque Deus
não tem o gênero feminino.
O feminino é que tem a marca de gênero, em português. O masculino é, na verdade, a ausência de gênero.
Por isso, pronomes como quem, aquilo, isto, nada, tudo, alguém, ninguém etc. exigem concordância no masculino,
[35] que não é gênero. Aliás, o masculino deveria chamar-se neutro ou gênero não-marcado, por oposição ao feminino,
que é gênero marcado. Da mesma forma, eu sei que prato é singular, porque não tem o s de plural. Apenas o plural
é número marcado em português. O singular, como o masculino, não tem marca.
Assim, se há muitas mulheres e apenas um homem num lugar, a concordância no masculino apenas
assinala que não se está especificando gênero nenhum, que não se está privilegiando ninguém.
[40] Com relação a nomes que são elogios ao homem e ofensas à mulher, como pistoleiro/pistoleira, homempúblico/
mulher-pública, touro/ vaca, aventureiro/ aventureira, cão (melhor amigo do homem/cadela (prostituta) etc.),
não há neles nada que permita concluir que a língua seja machista, porque se trata de vocábulos, de itens lexicais,
de palavras de livre escolha do falante, sem imposição da língua.
Se o falante tem o direito de inventar uma palavra, como fez Guimarães rosa com o seu hiputrélico, ele não
[45] tem o direito de inventar um gênero novo, um plural diferente ou uma flexão verbal própria. Os instrumentos gramaticais
são impostos ao falante, mas o vocabulário não. Assim, não é a língua que é machista, mas o falante, quando usa
nomes elogiativos para o homem e ofensivos para a mulher.
José Augusto Carvalho. Revista Língua Portuguesa,
ed. 39, janeiro 2009, p. 39-40.
Sobre as idéias do autor, assinale a alternativa correta.
A língua portuguesa é machista, pois em seu léxico há vários nomes que são elogiosos quando se aplicam aos homens, mas são ofensivos quando se aplicam às mulheres.
A língua portuguesa é machista, pois a concordância de número sempre se faz em consonância com a maioria masculina.
Da mesma forma que o ministro Magri inventou o imexível, alguém poderia inventar desfeliz em analogia com descontente.
Se o falante tem, de acordo com as normas da língua, liberdade para escolher os vocábulos que usará e, comumente, esse falante opta por construções que favorecem mais o público masculino, pode-se dizer que tanto a língua portuguesa como o falante dela são machistas.