Texto I
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OS CONFLITOS DE CLASSE DO BRASIL MODERNO
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\(\quad\quad\) [...] As classes são reproduzidas no tempo pela família e pela transmissão afetiva pelos
pais aos filhos de uma dada “economia emocional”. O sucesso escolar dependerá, por
exemplo, da transferência efetiva, aos filhos, de disciplina, pensamento prospectivo – ou
seja, a capacidade de renúncia no presente em nome do futuro – e capacidade de
5 concentração. Sem isso, os filhos se tornam no máximo analfabetos funcionais. Esse
“patrimônio de disposições” para o comportamento prático, que é um privilégio de classe
entre nós, vai esclarecer tanto a ocupação quanto a renda diferencial mais tarde. Como cada
classe social tem um tipo de socialização familiar específica, é nela que as diferenças entre
as classes têm que ser encontradas e ser objeto de reflexão.
10 As classes sociais só podem ser adequadamente percebidas, portanto, como um
fenômeno, antes de tudo, sociocultural, e não apenas econômico. Sociocultural posto que o
pertencimento de classe é um aprendizado que possibilita, em um caso, o sucesso e, em
outros, o fracasso social. São os estímulos que a criança de classe média recebe em casa
para o hábito de leitura, para a imaginação, o reforço constante de sua capacidade e
15 autoestima que fazem com que os filhos dessa classe sejam destinados ao sucesso escolar
e depois ao sucesso profissional no mercado de trabalho. Os filhos dos trabalhadores
precários, sem os mesmos estímulos ao espírito e que brincam com o carrinho de mão do
pai servente de pedreiro, aprendem a ser afetivamente, pela identificação com quem se ama,
trabalhadores manuais desqualificados. A dificuldade na escola é muito maior pela falta de
20 exemplos em casa, condenando essa classe ao fracasso escolar e, mais tarde, ao fracasso
profissional no mercado de trabalho competitivo.
\(\quad\quad\) Como somos formados, como seres humanos, pela imitação e incorporação pré-
reflexiva e inconsciente daqueles que amamos e que cuidam de nós, ou seja, os nossos pais
ou quem exerça as mesmas funções, a classe e seus privilégios ou carências são
25 reproduzidos a cada geração. Como ninguém escolhe o berço em que nasce, é a sociedade
que deve se responsabilizar pelas classes que foram esquecidas e abandonadas. Foi isso
que fizeram, sem exceção, todas as nações que lograram desenvolver sociedades
minimamente igualitárias. No nosso caso, as classes populares não foram simplesmente
abandonadas. Elas foram humilhadas, enganadas, tiveram sua formação familiar
30 conscientemente prejudicada e foram vítimas de todo tipo de preconceito, seja na
escravidão, seja hoje em dia. Essa é nossa diferença real em relação à Europa que
admiramos. A principal diferença é que a Europa tornou as precondições sociais de todas as
classes muito mais homogêneas. Ainda que exista desigualdade social, ela não é abissal
como aqui.
35 Não se trata apenas de acesso à boa escola – o que nunca existiu para as classes
populares. Trata-se de criticar a nossa herança escravocrata, que agora é usada para oprimir
todas as classes populares independentemente da cor da pele, ainda que a cor da pele negra
implique uma maldade adicional. Como esse mecanismo sociocultural de formação das
classes sociais é tornado invisível, então o racismo da cor da pele passa a ser o único fator
40 simbólico percebido na desigualdade do dia a dia. É importante, no entanto, notar também
as carências que reproduzem as misérias que são de pertencimento à classe, já que elas,
ao contrário da cor da pele do indivíduo, podem ser modificadas.
SOUZA, J. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017, p. 88-89. (adaptado).
“Ainda que exista desigualdade social, ela não é abissal como aqui.” (linhas 33-34)
Usada com sentido figurado hiperbólico, a palavra destacada poderia ser substituída em sentido denotativo por
aterrorizante
indecifrável
desmedida
obscura