A Terceira Margem do Rio
[1] Oco de pau que diz:
Eu sou madeira, beira
Boa, dá vau, triztriz
Risca certeira
[5] Meio a meio o rio ri
Silencioso, sério
Nosso pai não diz, diz:
Risca terceira
Água da palavra
[10] Água calada, pura
Água da palavra
Água de rosa dura
Proa da palavra
Duro silêncio, nosso pai
[15] Margem da palavra
Entre as escuras duas
Margens da palavra
Clareira, luz madura
Rosa da palavra
[20] Puro silêncio, nosso pai
Meio a meio o rio ri
Por entre as árvores da vida
O rio riu, ri
Por sob a risca da canoa
[25] O rio riu, ri
O que ninguém jamais olvida
Ouvi, ouvi, ouvi
A voz das águas
Asa da palavra
[30] Asa parada agora
Casa da palavra
Onde o silêncio mora
Brasa da palavra
A hora clara, nosso pai
[35] Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando mais dentro aflora
Tora da palavra
[40] Rio, pau enorme, nosso pai
Milton Nascimento e Caetano Veloso) - http://letras.mus.br/caetano-veloso/201521/
O poema de Caetano Veloso, musicado por Milton Nascimento, estabelece relações dialógicas com o conto "A Terceira Margem do Rio", de Guimarães Rosa. Assinale a alternativa que apresenta informação INCORRETA sobre os dois ou sobre um dos textos.
O poema estabelece semelhanças entre o autor e o protagonista do conto "A Terceira Margem do Rio": o "pai" buscou um modo singular de existência equilibrado entre o ser e o não ser humano. O autor rompeu com quase toda tradição literária brasileira; com os limites restritos da norma culta da língua; com as dicotomias entre realidade e irrealidade, alegoria e factualidade, espaço geográfico e espaço introspectivo.
Caetano Veloso transpõe o conto rosiano para a linguagem poética preservando, em certa medida, a ordem dos acontecimentos do enredo: o tronco de madeira pede ao homem para ser transformado em canoa (do 1° ao 6° versos); o homem reflete sobre a resolução partir para outro modo de existência (do 7° ao 20° versos); o homem passa a viver entre as duas margens do rio (do 21° ao 39° versos); rio, canoa e homem se fundem formando uma terceira margem (último verso).
Os versos "A voz das águas/Asa da palavra/Asa parada agora" evocam imageticamente uma ave de asas abertas sendo conduzida pelo rio e sugerida pelo traçado triangular da canoa e dos remos manejados pelo homem, além do som provocado pelo movimento das águas. Ave também indicia a liberdade que o homem tinha de ir, vir ou permanecer, no contexto do poema.
Os versos "Água da palavra/Água de rosa dura/Proa da palavra" indicam, respectivamente, a semelhança entre a fluidez das águas do rio e os vastos espaços de movência da linguagem; a dureza do vocabulário típico de Guimarães Rosa que impede qualquer tipo de interpretação do conto; a linguagem rosiana como revolucionária, inventiva, à frente da usual durante o Modernismo, "de proa".
Os versos "Meio a meio o rio ri/Por entre as árvores da vida/O rio, ri" sugerem a liberdade do rio em seus movimentos e percursos, e a do homem em sua decisão de se estabelecer para sempre imóvel sobre águas em movimento, em contraposição à tradição, às interdições, à normatividade, às imposições que ditam regras de fixação a padrões estabelecidos pela língua, pela sociedade e pela moral cristã (simbolizada no poema através do verso "Por entre as árvores da vida" que indica códigos de proibição, fixação na tradição e impossibilidade de movência existencial).