A questão se refere ao texto a seguir:
Texto
[1] Em frente da minha casa existe um muro enorme, todo branco. No Facebook, uma postagem me chama
atenção: é um muro virtual e a brincadeira é pichá-lo com qualquer frase que vier à cabeça. Não quero pichar o
mundo virtual, quero um muro de verdade, igual a este de frente para a minha casa. Pelas ruas e avenidas,
vou trombando nos muros espalhados pelos quarteirões, repletos de frases tolas, xingamentos e erros de
português. Eu bem poderia modificar isso.
[2] “O caminho se faz caminhando”, essa frase genial, tão forte e certeira do poeta espanhol Antonio
Machado, merece aparecer em diversos muros. Basta pensar um pouco e imaginar; de fato, não há caminho, o
caminho se faz ao caminhar.
[3] De repente, vejo um prédio inteiro marcado por riscos sem sentido e me calo. Fui tentar entender e não
me faltaram explicações: é grafite, é tribal, coisas de difícil compreensão. As explicações prosseguem: grafite é
arte, pichar é vandalismo. O pequeno vândalo escondido dentro de mim busca frases na memória e, então,
sinto até o cheiro da lama de Woodstock em letras garrafais: “Não importam os motivos da guerra, a paz é
muito mais importante”.
[4] Feito uma folha deslizando pelas águas correntes do rio me surge a imagem de John Lennon; junto
dela, outra frase: “O sonho não acabou”, um tanto modificada pela minha mão, tornando-se: o sonho nunca
acaba. E minha cabeça já se transforma num muro todo branco.
[5] Desde os primórdios dos tempos, usamos a escrita como forma de expressão, os homens das cavernas
deixaram pichados nas rochas diversos sinais. Num ato impulsivo, comprei uma tinta spray, atravessei a rua
chacoalhando a lata e assim prossegui até chegar à minha sala, abraçado pela ansiedade aumentada a cada
passo. Coloquei o dedo no gatilho do spray e fiquei respirando fundo, juntando coragem e na mente
desenhando a primeira frase para pichar, um tipo de lema, aquela do Lô Borges: “Os sonhos não envelhecem”
– percebo, num sorrir de canto de boca, o quanto os sonhos marcam a minha existência.
[6] Depois arriscaria uma frase que criei e gosto: “A lagarta nunca pensou em voar, mas daí, no espanto da
metamorfose, lhe nasceram asas...”. Ou outra, completamente tola, me ocorreu depois de assistir a um
documentário, convencido de que o panda é um bicho cativante, mas vive distante daqui e sua agonia não é
menor das dos nossos bichos. Assim pensando, as letras duma nova pichação se formaram num estalo:
“Esqueçam os pandas, salvem as jaguatiricas!”.
[7] No muro do cemitério, escreveria outra frase que gosto: “Em longo prazo estaremos todos mortos”, do
John Keynes, que trago comigo desde os tempos da faculdade. Frases de túmulos ganhariam os muros; no de
Salvador Allende está consagrado, de autoria desconhecida: “Alguns anos de sombras não nos tornarão
cegos.” Sempre apegado aos sonhos, picharia também uma do Charles Chaplin: “Nunca abandone os seus
sonhos, porque se um dia eles se forem, você continuará vivendo, mas terá deixado de existir”.
[8] Claro, eu poderia escrever essas frases num livro, num caderno ou no papel amassado que embrulha o
pão da manhã, mas o muro me cativa, porque está ao alcance das vistas de todos e quero gritar para o mundo
as frases que gosto; são tantas, até temo que me faltem os muros. Poderia passar o dia todo pichando frases,
as linhas vão se acabando e ainda tenho tanto a pichar... “É preciso muito tempo para se tornar jovem”, de
Picasso, “Há um certo prazer na loucura que só um louco conhece”, de Neruda, “Se me esqueceres, só uma
coisa, esquece-me bem devagarzinho”, cravada por Mário Quintana...
[9] Encerro com Nietzsche: “Isto é um sonho, bem sei, mas quero continuar a sonhar”, que serve para
exemplificar o que sinto neste momento, aqui na minha sala, escrevendo no computador o que gostaria de
jogar nos muros lá fora, a custo me mantendo calmo, um olho na tela, outro voltado para o lado oposto da rua.
Lá tem aquele muro enorme, branco e virgem, clamando por frases. Não sei quanto tempo resistirei até puxar
o gatilho do spray.
Adaptado de: ALVEZ, A. L. Um muro para pichar. Correio do Estado, fev 2018. Disponível em Acesso em: ago. 2018.
Por ser uma crônica, o texto apresenta formas coloquiais, que por vezes distanciam o texto da norma padrão da língua portuguesa. Assinale a alternativa em que ocorre desvio da norma culta.
Fui tentar entender e não me faltaram explicações: é grafite, é tribal, coisas de difícil compreensão.
O pequeno vândalo escondido dentro de mim busca frases na memória e, então, sinto até o cheiro da lama de Woodstock [...]
Depois arriscaria uma frase que criei e gosto [...]
Desde os primórdios dos tempos, usamos a escrita como forma de expressão [...]
Poderia passar o dia todo pichando frases, as linhas vão se acabando e ainda tenho tanto a pichar...