A PRESSA DE ACABAR
[1] Evidentemente nós sofremos agora em todo o mundo de uma dolorosa moléstia: a pressa de
acabar. Os nossos avós nunca tinham pressa. Ao contrário. Adiar, aumentar, era para eles a
suprema delícia. Como os relógios, nesses tempos remotos, não eram maravilhas de precisão,
os homens mediam os dias com todo o cuidado da atenção.
[5] Sim! Em tudo, essa estranha pressa de acabar se ostenta como a marca do século. Não há
mais livros definitivos, quadros destinados a não morrer, ideias imortais. Trabalha-se muito mais,
pensa-se muito mais, ama-se mesmo muito mais, apenas sem fazer a digestão e sem ter tempo
de a fazer.
Antigamente as horas eram entidades que os homens conheciam imperfeitamente. Calcular
[10] a passagem das horas era tão complicado como calcular a passagem dos dias. Inventavam-se
relógios de todos os moldes e formas.
Hoje, nós somos escravos das horas, dessas senhoras inexoráveis* que não cedem nunca e
cortam o dia da gente numa triste migalharia de minutos e segundos. Cada hora é para nós
distinta, pessoal, característica, porque cada hora representa para nós o acúmulo de várias
[15] coisas que nós temos pressa de acabar. O relógio era um objeto de luxo. Hoje até os mendigos
usam um marcador de horas, porque têm pressa, pressa de acabar.
O homem mesmo será classificado, afirmo eu já com pressa, como o Homus cinematographicus.
Nós somos uma delirante sucessão de fitas cinematográficas. Em meia hora de sessão tem-se
um espetáculo multiforme e assustador cujo título geral é: Precisamos acabar depressa.
[20] O homem de agora é como a multidão: ativo e imediato. Não pensa, faz; não pergunta, obra;
não reflete, julga.
O homem cinematográfico resolveu a suprema insanidade: encher o tempo, atopetar o tempo,
abarrotar o tempo, paralisar o tempo para chegar antes dele. Todos os dias (dias em que ele não
vê a beleza do sol ou do céu e a doçura das árvores porque não tem tempo, diariamente, nesse
[25] número de horas retalhadas em minutos e segundos que uma população de relógios marca,
registra e desfia), o pobre diabo sua, labuta, desespera com os olhos fitos nesse hipotético
poste de chegada que é a miragem da ilusão.
Uns acabam pensando que encheram o tempo, que o mataram de vez. Outros desesperados
vão para o hospício ou para os cemitérios. A corrida continua. E o Tempo também, o Tempo
[30] insensível e incomensurável, o Tempo infinito para o qual todo o esforço é inútil, o Tempo que
não acaba nunca! É satanicamente doloroso. Mas que fazer?
João do Rio Adaptado de Cinematógrafo: crônicas cariocas. Rio de Janeiro: ABL, 2009.
A tira de André Dahmer pode ser relacionada com o texto anterior, a crônica de João do Rio.
O trecho da crônica que melhor evidencia essa relação é:
Trabalha-se muito mais, pensa-se muito mais, ama-se mesmo muito mais, (l. 6-7)
Em meia hora de sessão tem-se um espetáculo multiforme e assustador (l. 18-19)
Não pensa, faz; não pergunta, obra; não reflete, julga. (l. 20-21)
Uns acabam pensando que encheram o tempo, que o mataram de vez. (l. 28)